sábado, 8 de janeiro de 2011

Segundo Intervalo, ou A conversão de Chesterton

Prezados Amigos;

Vejam como ocorreu a conversão vivida por G. K. Chesterton, relatada no livro "Ortodoxia", publicado pela Editora Mundo Cristão. Ela nos revela que a inteligência para compreender o mundo deve procurar harmonizar as verdades parciais, obtidas nos vários momentos e setores da vida, uma vez que, dotadas ao mesmo tempo de natureza individual e de propriedades interdependentes, fazem parte, juntamente com o mistério, da Grande Verdade Complexa.

O autor, com a doutrina de um Deus pessoal (que criou o mundo separado de si) encontrou explicações para a sua conclusão intuitiva de que o mundo merece ser amado, mas não merece inteira confiança. Daí, todas as suas outras intuições, estas tidas na infância, foram explicadas por um determinado ponto da doutrina. Sua intuição de que as formas da natureza são causadas por escolhas misteriosas foi explicada pela vontade de Deus. Sua intuição de que a felicidade é condicionada e o bem é uma relíquia foi explicada pela doutrina da Queda. Sua intuição de que o universo é pequeno e aconchegante foi explicada pela natureza infinita de Deus. E, segundo o autor, compreendeu o mais importante, quando tais encaixes modificaram o seu entendimento sobre a causa para o otimismo humano: ao invés do homem ser otimista porque se encontra em completa harmonia com a natureza, o homem deve ser otimista pelo fato de não se adequar completamente ao mundo.

Enfim, o exemplo de Chesterton nos mostra que um intelectual, antes de tudo, deve ser um homem sério e honesto, que utiliza a história, as experiências e os pensamentos para verificar a consistência das doutrinas.  Segue o trecho do livro:

"E depois aconteceu uma experiência que é impossível descrever. Foi como se eu houvesse estado tateando às cegas desde o berço com duas máquinas enormes e pouco manejáveis, de formato distinto e sem conexão aparente – o mundo e a tradição cristã. Eu descobria esta falha no mundo: o fato de alguém ter de algum modo de amar o mundo sem confiar nele; de alguma forma, devíamos amar o mundo sem sermos mundanos. Descobrir essa saliente característica da teologia cristã, como uma espécie de ponta rígida, a insistência dogmática de que Deus era pessoal e criara um mundo separado de si mesmo.

A ponta do dogma encaixa-se exatamente na falha do mundo – evidentemente fora concebida para ocupar esse espaço – e então uma coisa estranha começou a acontecer. Assim que essas duas partes das duas máquinas se ajustaram, uma depois da outra, todas as demais se encaixaram, combinando com misteriosa exatidão. Eu podia ouvir peça por peça em toda a maquinaria ocupando seu lugar com uma espécie de clique de alívio. Depois de ajustada uma parte, todas as outras repetiam o ajuste, como toque após toque o relógio bate o meio-dia. Instinto após instinto era respondido por doutrina após doutrina. Ou, para variar a metáfora, eu era como alguém que houvesse avançado num país inimigo para tomar uma alta fortaleza. E quando o forte caíra, todo o país se rendera, posicionando-se em bloco atrás de mim.

A paisagem toda estava iluminada, por assim dizer, remontando aos campos de minha infância. Todas aquelas fantasias cegas da meninice que no quarto capítulo em vão tentei identificar nas trevas, de repente, tornaram-se transparentes e sadias. Eu estava certo quando senti que as rosas eram vermelhas por alguma espécie de escolha: era a escolha divina. Eu estava certo quanto senti que eu quase preferia dizer que a relva tinha a cor errada a dizer que aquela sua cor devia ser necessária: ela poderia de fato ser de qualquer outra cor.

Minha percepção de que a felicidade pendia do fio incerto de uma condição, no fim das contas, significava alguma coisa: significava a doutrina da Queda. Mesmo aqueles sombrios e informes monstros de noções que não fui capaz de descrever, muito menos de sustentar, ocuparam suavemente seus espaços como colossais cariátides do credo. A fantasia de que o cosmo não era vasto e vazio, mas pequeno e aconchegante, tinha agora um significado realizado, pois toda obra de arte deve ser pequena aos olhos do artista: para Deus as estrelas talvez fossem apenas minúsculas e caras, como diamantes. E o meu persistente instinto de que, de algum modo, o bem não era simplesmente um instrumento a ser usado, mas uma relíquia a ser preservada, como os bens do navio de Crusué – até isso fora o tímido sussurro de algo originalmente sábio, pois segundo o cristianismo, éramos de fato os sobreviventes de um naufrágio, a tripulação de um navio dourado que fora a pique antes do começo do mundo.

Mas o ponto importante era o seguinte: que tudo isso invertera totalmente a razão do otimismo. E no instante em que a inversão aconteceu, senti um súbito alívio como quando um osso é recolocado em sua articulação. Muitas vezes chamara-me de otimista, para evitar a blasfêmia por demais evidente do pessimismo. Mas todo o otimismo da época tinha sido falso e desanimador por esta razão: ele sempre tentara provar que estamos em harmonia com o mundo.

O otimismo cristão baseia-se no fato de NÃO nos encaixarmos no mundo. Eu tentara ser feliz dizendo a mim mesmo que o homem é um animal como outro qualquer que procurava seu alimento provindo de Deus. Mas agora eu estava realmente feliz, pois aprendera que o homem é uma monstruosidade. Eu estivera certo ao sentir que todas as coisas eram estranhas, pois eu mesmo era simultaneamente pior e melhor que todas elas.

O prazer do otimista era prosaico, pois baseava-se na naturalidade de tudo; o prazer cristão era poético, pois residia na antinaturalidade de tudo a luz do sobrenatural. O filósofo moderno me dissera muitas e muitas vezes que eu estava no lugar certo, e eu ainda me sentia deprimido mesmo aceitando isso. Mas eu ouvira que estava no lugar ERRADO, e minha alma exultou de alegria, cantando como um pássaro na primavera. O conhecimento revelou e iluminou aposentos esquecidos da casa escura da infácia. Agora eu sabia por que a relva sempre me parecera estranha como a barba verde de um gigante, e por que eu podia sentir saudades de casa estando em casa.”

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