quarta-feira, 30 de setembro de 2009

NO LEITO DE NEBRÍDIO



À época pensei, Nebrídio, que te recobrar para a vida
não dependia do bendito ato do batismo,
mas te levantarias pela memória dos nossos discursos,
pela vitória do bem na luta travada dentro de ti.

Errei – meu amor por ti exigia te recobrar para a vida,
enquanto eles, os humildes de Roma, movidos por outro amor,
lavavam tua mente da confusão de palavras
que encobria a simples imagem do paraíso.

Junto a teu corpo falecido, faleceram minhas idéias,
feitas de carne e sangue como a matéria de qualquer corpo.
Tua alma agora pode seguir para o céu,
e eu posso deixar as estradas do erro.

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

SOBERBA DE BAZAROV 


"Meu pai organizou nossa fazenda
com alguma habilidade no cultivo.
Construiu o estábulo, preparou o pasto,
protegeu a cultura do pastar dos brutos,
domesticando, cercando como lhe era possível,
na proporção da pouca ciência do seu tempo.
Reconheço que aos poucos entregou os seus dias
numa luta contra pragas.
Filho único, herdei a fazenda,
predestinado agora a experimentar meu engenho:
deixei o pó ocupar os poros das folhas,
o esterco entupir as cocheiras,
o capim crescer ao léu rarefeito.
Esse ano semeei aos pássaros
sementes guardadas por meus ancestrais,
porque aprendi que a beleza pertence à desordem,
assim como o útil, às herdades abandonadas.
Educado pelos atuais doutos,
legarei um campo tomado de ervas daninhas."

terça-feira, 15 de setembro de 2009

CONFISSÃO DE VRONSKI

“Assim como um canal polui o mar,
para aonde conduzo os meus sentidos
sinto o pesar da criatura amada.
Meu coração se estreita em constrições
num enjôo desesperançoso que se alarga
de meu peito ao seu, ante o nosso sorriso frouxo.
É como se a minha essência entupisse
os condutos do seu entendimento e, 
por isso, fosse de todos a pior essência.

E mesmo assim, Deus, a Ti entrego meu espírito,
sabendo que não tenho mãos
para receber a Tua dádiva,
pois levo comigo a origem da maldade.
Em meio a tantas dúvidas Te indago:
Há perdão para o meu pecado?”

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

MANUELA OU ANA KARENINA

Reduziu o universo à ponta do
alfinete que encurtava o seu decote.
Aguardava uma vertigem como
a um messias repentino.

Trocou sua família pela noite,
quando imergiu na confusão dos homens.
Desprendeu-se cônscia da morte,
mas impedida de recuperar o amor.

E foi disposta a ouvir todas as mentiras
que a consciência conta ao corpo,
e foi desabrigada sobre uma tempestade de medo,
e saltou sobre os trilhos da ferrovia.

quinta-feira, 3 de setembro de 2009

    Amigos;

    O escritor Marsílio Ficino foi responsável pela primeira tradução da obra de Platão para o latim por volta de 1483. Depois, publicou os seus comentários sobre o amor, que compôs a partir de interpretações extraídas dos diálogos Banquete e Fedro. Segue um trecho do referido livro chamado Commentarium in Convivium Platonis, traduzido para o português por Ana Thereza Basílio Vieira com o título de “O Livro do Amor”, e publicado pela Editora Clube de Literatura Cromos. Aqueles que já viveram ou vivem uma experiência de amor, seja para com Deus, com os pais, com os filhos, com os esposos, com os parentes, com os amigos, ou com o próximo, lerá a descrição do que provavelmente não conseguia traduzir em palavras:

   “Todas as vezes que duas pessoas se amam com mútua benevolência, este naquele e aquele neste vive. Deste modo, os homens reciprocamente se trocam e cada um destina a si mesmo ao outro, a fim de recebê-lo. Vejo de que modo trocam-se a si mesmos, quando se esquecem de si. Mas não percebo como recebem o outro. Pois, aquele que não tem a si mesmo, muito menos poderá possuir o outro. Mas, na verdade, cada um tem a si próprio e ao outro. Porque ele existe, mas naquele. Aquele também existe, mas neste. Sem dúvida, enquanto eu te amo, encontro-me, amante, em ti, estando eu pensando em mim, e recobro-me por mim mesmo, perdido na minha negligência, conservando-me em ti. A mesma coisa tu fazes em mim.

    E de novo isto parece admirável. Pois eu, depois que perdi a mim mesmo, se por ti me recobro, por ti tenho a mim; se por ti tenho a mim, eu te tenho antes e mais que a mim mesmo, estou mais próximo de ti que de mim, visto que me ligo a mim precisamente por ti. Nisto sempre a força do desejo difere da violência de Marte. Pois, assim o império e o amor se diferenciam. O imperador por si possui os outros, o amante pelo outro se ama e cada um dos amantes torna-se maior por si mesmo, mais próximo do outro, e morto em si revive no outro. De fato, existe apenas uma única morte no amor recíproco, e uma dupla ressurreição. Pois morre uma vez em si mesmo aquele que ama quando se despreza. Logo renasce no amado, quando o amado o recebe com ardente pensamento. Renasce pela segunda vez, quando no amado, enfim, se reconhece e não duvida que é amado. Ó morte feliz, que duas vidas perseguem! Ó comércio admirável, no qual alguém trai a si mesmo pelo outro, tem o outro e não deixa de ter a si! Ó lucro inestimável, quando dois assim se fazem um, porque cada um dos dois por um só se faz dois e, como se fosse duplicado, quem tivera uma vida, já terá duas, sobrevindo uma morte! Pois quem uma só vez está morto renasce duas vezes, por uma vida fez-se duas, e por si, sendo um, conseguiu duas vidas para si.”