sexta-feira, 22 de abril de 2011

A propósito da semana santa

A propósito da semana santa, folheando os meus livros a procura de alguma luz para compreender melhor este momento e o meu lugar no seu contexto, deparei-me com uma  passagem do livro "A Descoberta do Outro" de Gustavo Corão. 

Hoje em dia não temos mais os motivos de 1943 para nos vangloriarmos de uma Igreja bem instalada no mundo ou de uma superioridade intelectual católica. Ao contrário, a produção intelectual católica e a posição que a Igreja vem ocupando no mundo é motivo para preocupações; mas, a despeito de já não existirem tais circunstâncias, remanesce a mesma necessidade de 1943 para ouvirmos as duras palavras de Corção. A história do Calvário não é um história: é um mistério, e o cristão deve colocá-la diante de si  num eterno presente, como quem carrega uma cruz durante todo o tempo.   

Eu não posso deixar de dizer que Gustavo Corção é um dos meus autores favoritos. Segue o texto:

"O caminho parecer fácil e largo; mais adiante um pouco, ali mesmo naquela volta do caminho, naquele ângulo do calendário, marcado por um solstício e por um plenilúnio, dir-se-ia que ele encontrará um monumento enguirlandado, um arco triunfal, um obelisco: mas de repente ele encontra a cruz. 

Esse monumento é decisivo e essa prova é sempre dura; a glória da cruz, vista pela fé, é uma prova que o homem novo tem de carregar todos os dias, entrando em luta com o homem velho que se tinha instalado no mundo com suas convicções, seus tiques intelectuais e sobretudo seu critério de vitória. Justamente quando lhe parecia estar próximo um novo triunfo, um acréscimo de prestígio, um formidável sucesso, ele esbarra na Cruz. O homem novo sobressalta-se e esperneia sob o aguilhão; apalpa-se, busca apoio no seu próprio discernimento que até ali o sevira como bússola fiel para indicar com nitidez os caminhos da credibilidade e que agora parece ter enlouquecido sob a ação de estranho magnetismo. Ele mesmo pedira a fé. Pusera de joelhos seu corpo, sua alma, suas convicções, sua inteligência, pusera tudo de joelhos; submetera a razão a prova última do reconhecimento e do amor; escolhera; decidira casar-se em vez de ficar a vida inteira excorgitando; optara; pedira a Deus com amoroso temor a nova aliança de noivado... E agora, ao levantar-se, sente nos ombros o peso duma cruz.

Muitas vezes, lendo as páginas do novo testamento, romanticamente, para lhes achar um pitoresco, para entrever um colorido histórico nas cenas evangélicas, e ver uma estrada da Samaria batida de sol, achamos fácil reconhecer o Cristo e pasmamos assombrados ante o terrível equívoco dos judeus. O drama da paixão parece-nos evidente, claro, compreensível; qualquer um de nós não gostará de ser equiparado aos soldados romanos que jogavam dados praguejando ou a algum mercador que passasse ao longe tangendo seus asnos carregados de fazenda, sem voltar sequer o rosto preocupado e ganancioso para ver a Santa Agonia. Lendo a paixão assim, meditando-a como se fosse romance de enredo muito sabido, colocamo-nos, como é usual nessas leituras, do lado do autor e em pé de igualdade. Saboreamos a superioridade de saber ponto por ponto o que vai acontecer; sabemos que o pretor é aquele que vai lavar as mãos e Caifás é o que vai rasgar as vestes. E já sabemos que o Cristo é o Cristo. Já sabemos. É ele o Redentor do qual dois mil anos falarão e para o qual serão erigidas as catedrais de Estrasburgo e Chartres. Sentimo-nos imensamente superiores aos indiferentes do Calvário e estremecemos de horror diante dos que esbofetearam, insultaram e cuspiram a Santa Face.

Mas convém pensar um pouco: qual de nós poderia realmente suportar a dura prova da cruz? Qual de nós poderia aguentar a glória da cruz, a insuportável visão do opróbio, deixando seu velho critério de vitória, saducaico ou farisaico, baseado no prestígio ou no sucesso? Qual de nós poderia ver atrás daquele rosto ensanguentado e cuspido a Face dum Rei?

Parece facil agora, porque já lemos o texto muitas vezes e temos uma alegoria da paixão gravada em nossa memória. Parece fácil, mas agora mesmo, em cada instante, em cada dia, apesar de saber de cor o enredo da paixão, apesar da graça do nosso batismo, não somos nós mesmos que buscamos o triunfo fácil de ter razão e prestígio, não somos nós mesmos que esperneamos diante da loucura e do escândalo da exinanição do Cristo em sua Igreja?

Realmente, cada vez que nós desejamos a glória mundana ou política de sermos católicos, ou nos espantamos diante dos insucessos do Vaticano na política internacional, cada vez que nos envergonhamos de ouvir um sermão medíocre ou adotamos uma atitude de irritação diante da vida escandalosa de algum sacerdote, estamos exatamente como os judeus estavam diante da cruz e de nada nos adiantou saber de cor o enredo da paixão. O cristão está de pé diante da paixão do Espírito Santo e somente na fé pode suportar esse terrível espetáculo.

E ai está. As perguntas que fazíamos atrás, sobre as nossas probabilidades de reconheciomento diante do Calvário, pareciam idiotas como o são todas as suposições baseadas em retrospecções históricas. Não tem sentido, fora do recurso retórico, perguntar o que seria hoje São Paulo ou o que faria um de nós diante de Nabucodonosor. Mas a história do Calvário não é uma história: é um mistério. O nosso memorar não tem o sentido duma retrospecção histórica, mas de uma visão no mistério da fé. Se alguma tolice havia, ela estava antes no modo impressionista, hitórico, colorido, sentimental, de enfrentar a paixão, donde saía a extraordinária presunção de estarmos livres daquele espetáculo da cruz, isentos de seu escândalo e de sua loucura, blindados por dois mil anos de história e pelas pinturas alegóricas da Renascença.

Por isso o homem novo, na volta de seu caminho, espeneia sob o aguilhão. Estava na iminência de ter razão e de tirar daí um renovado prestígio. Apesar da fé do seu batismo já tinha começado seus cálculos sobre a respeitabilidade do quarteirão e já entrevia um Igreja decente, bem instalada no mundo, triunfante, bem sucedida, acatada por causa de Maritain, prestigiada pela conversão de Bergson, uma Igreja confortável, uma igreja sem cruz."