segunda-feira, 31 de agosto de 2009

PEDIDO

Ó Sono domador da face ridente,
ó Nutriz daqueles que são e não são,
ó Face vertiginosamente refletida,
ó Ponto, ó Arco, ó Esfera... ó Ponto.

Sendo maior que o imensurável,
estando além do inatingível,
sei que conheces profundezas de mim
aonde eu próprio, consciente, não fui.

Quando soprares Tua imensa concha
a inundar o mundo de silêncio,
guarde a memória dos nossos erros
constitutivos; nós, os comedores do fruto.

domingo, 30 de agosto de 2009

[Depois de cantar um canto irresistível]
 
Depois de cantar um canto irresistível
aos nautas que há muito não trafegavam
por aqueles mares distantes;
depois do canto ecoar nos rochedos
de sua ilhota e nos ouvidos das gaivotas
que, impassíveis, se estendiam ao sol,
o último daqueles animais sem destino
atravessou o Mediterrâneo, o Atlântico
e a Baía de Todos os Santos, para emergir
seu corpo perfeito no Porto da Barra,
sob os olhares luminosos dos turistas,
à procura de Odisseu.

quinta-feira, 27 de agosto de 2009

ASCESE

Remaria o meu barco outras vezes
sem leme para onde o amor apontasse.
Contudo cri ser maior que o Todo
e assim fui desviado do rumo
no qual ansiei retomar a viagem.
Obrigado a ver e rever a Discórdia nas águas,
numas ilhas me foi negada a visão,
noutras perdi o pendor de amar.
Peregrinei marginal em áridos territórios,
mas sempre mantive o meu espírito ascético
na firme convicção do retorno.
Triste viagem enfim me trouxe à arcada paterna,
foram anos sem conta correndo países,
preso em loucuras semelhantes aos sonhos.
Concedeu-me, então, Pai, aportar nesta praia,
neste sítio onde vejo portas abertas
à espera de mim há muito perdido. 

quarta-feira, 26 de agosto de 2009

Amigos;
Recentemente li o único romance do grande escritor Gustavo Corção, cujo título é “Lições de Abismo”, publicado pela Editora Agir. Confesso que a literatura brasileira nunca foi a minha predileta, mas este livro, em especial, guardarei na mesma gaveta de minha memória em que guardo os grandes romances da literatura ocidental. Segue um trecho, no qual podem perceber não somente a habilidade do escritor como também a profundidade com que o tema é tratado:

“Fico a olhar Sirius. E cá de baixo, deste chão que me cola, apesar de minhas misérias, de minha leucemia, de minhas truncadas recordações – ainda mais truncadas do que as células do meu sangue – eu lanço um repto ao claro globo azul que me fita lá do alto, lá do seu abismo com cinqüenta anos-luz de profundidade.

O sol, ó diáfana matéria, ó imensidade perdida dentro da imensidade, aqui onde me vês eu sou um Homem, Verme consciente, roseau pensant. Qual é o maior, Sirius ou Pascal? Qual dos dois vale mais, o sol ou o melancólico pensador?

Ó astro, Parsifal perdido no céu, tu ignoras teu nome. Vagueias, ó inocente, ó ingênuo absoluto, com teus gases excessivos e um pouco ridículos. Perambulas como um cego, passas como um surdo, vagueias como um desmemoriado de olhar vazio, e vê bem, considera que até para te humilhar é ainda do homem que tiro as imagens. Na verdade, és menos do que um cego, do que um surdo, do que um desmemoriado. A tábua de minha mesa é mais rica do que teu globo de átomos simplificados. De que vale o tamanho? Que nobreza tem a distância? Tu estás acorrentado às equações, mais do que por metáforas lá estão as estrelas de Andrômeda, a acorrentada do céu. Tu és Sirius, Alfha Canis Maioris. Tens ascensão reta e declinação; e nós, nós os vermes, servimos-nos de teu esplendor, cativando-o, domesticando-o e inscrevendo-o no Nautical Almanack. Servo colossal, não passas de servo. Eu sou um verme, mas tenho consciência de sê-lo. Sou miserável, e o sei. Sou ridículo, e riu-me. Sou culpado, e choro.

Ai de nós! A raça de Pascal anda traída. Muitos andam por aí, ó astro, a dizer que também somos acorrentados, que também somos apenas um aglomerado de átomos que durante um certo tempo se demoram em nossos limites, na esquina de um cotovelo, no vértice de um nariz, nas fugitivas pontas dos cabelos. Dizem também que somos ocos, que vivemos da casca que a sociedade nos empresta, ou das eructações que nos vêm das experiências mal digeridas. Mas não te iludas com esses detratores, ó astro. A insensatez dessa gente, por derrisão, é a contraprova de nossa dignidade. Nós temos um imenso privilégio, que é o avesso de nosso manto real; nós temos a glória do erro.

Mas eu não vou discutir contigo, estrela; não vou argumentar. Basta que me apresente: eis aqui um homem. A luz que me chega à retina não encontra um ser passivo e inerte, como uma placa recoberta de bromureto, que recebe a imagem, que a revela no banho dos humores, que a fixa no hipossulfito da memória, e em função desse impacto dos fótons age, fala, dança e chora. Não. Pensar não é simplesmente receber. É algo mais ativo, que vai ao encontro do objeto. Quando a luz do astro me bate á porta dos sentidos, há em mim alguma coisa que se ergue de um trono, que recebe o mensageiro, que examina a mensagem, apossando-se dela, transformando-a, sutilizando-a – e que diz ao coruscante vassalo do céu: ‘Tu és Sirius, Alfha Canis Maioris’”.

terça-feira, 25 de agosto de 2009

HEITOR
  
"Mesmo contra dominadores de artes mundanas,
apesar de fadado a nunca vencer,
sempre lutarei em defesa dos meus.
Nestes confrontos de mundos opostos,
mesmo fadado a ser pasto dos cães,
sempre lutarei em defesa dos meus.

Se atado ao peito carrego meu filho
que ainda ignora os frutos da terra,
Se a amada esposa aguarda ansiosa
o fim desta guerra de tantas derrotas
- sendo tais os legados a serem mantidos -
sempre lutarei em defesa dos meus.

Pois vejo deuses e homens vitoriosos na luta
mortificar seus espíritos em dores ocultas,
ao passo em que, de derrota em derrota,
nos invisíveis confrontos entre vidas opostas,
sigo rumo a estrela do Teu nascimento
e em Ti eu encontro mais que consolo.”