1.
A estrutura do livro “A Queda”.
O livro de Albert
Camus, “A Queda”, deve ser classificado, dentre os gêneros literários, como
livro de ficção. Afasto o problema de
classificá-lo, dentre as espécies de ficção, como romance ou novela. Esta é uma
questão formal que interessa aos especialistas da área de letras.
Mas é importante
classificá-lo como ficção porque nele essencialmente há a narrativa da estória
de uma personagem. Sua narrativa, entretanto, transcorre de um modo
ultra-subjetivo, pois o autor concedeu à referida personagem o exclusivo poder
para contar fatos e ações sobre si própria e sobre terceiros. É dela a única
voz que soa do começo ao fim do livro e, flagrantemente, ela conta tudo sob a
influência do seu estado emocional.
Entretanto, a personagem
ultrapassa a narrativa de fluxo emocional, pois ao mesmo tempo constrói
argumentos e afirma regras gerais e abstratas de maneira sistemática sobre as
relações e a natureza humana, daí porque, dentro do romance, o autor colocou na
boca da personagem uma espécie de ensaio filosófico.
Assim, para facilitar a
compreensão do livro, divido-o em duas grandes partes: “O romance” e o “O
ensaio filosófico”.
O romanesco é composto
pela narrativa de fatos passados e outros ocorridos no presente, estes contrapondo
aqueles: os fatos do passado servem para revelar como era a personagem e os
fatos do presente, para expor as drásticas mudanças sofridas pelo mesmo. Mas,
de logo, afirmo que a multiplicidade dos contrapontos não exclui a manutenção
de um caráter único esboçado pela personagem.
O filosófico se
subdivide em argumentos de “julgamento” e de “penitência”, são estes os termos
justapostos pela personagem para se autodenominar “juiz-penitente”, aquele que
julga e ao mesmo tempo cumpri a pena. “O julgamento” se compõe de afirmações
sobre seu próprio comportamento e sua natureza; sobre o comportamento e a
natureza das pessoas e sobre o comportamento e a natureza humana. São,
portanto, três tipos de afirmações distintas, que seguem uma progressão do
individual para o geral e do geral para o abstrato, ao modo da seguinte
fórmula: ”se eu sou assim, então as pessoas são assim; e se as pessoas são
assim, então esta é a natureza humana”. “A penitência”, de outra parte, se
divide em afirmações que justificam a vida da personagem no “desconforto” e que
justificam a vida de todos no mesmo “desconforto”.
O romanesco e o
filosófico se articulam, por fim, numa correlação indutiva. A diversidade dos
fatos passados e presentes, partes do romanesco, são fundamentos para as afirmações
de caráter geral e abstrato constitutivas do julgamento e da penitência, partes
do filosófico.
2.
O Romance
2.1
Enredo.
Caminhando pelas ruas
de Amsterdam ou sentados numa mesa de bar, o Sr. Jean Bastiste, um advogado
parisiense, narra a um seu compatriota os motivos pelos quais ele se
transformou num “juiz-penitente” e o que ser um “juiz-penitente”.
Depois de algumas
divagações e da afirmação de que é um “juiz-penitente”, que ao todo constitui o
primeiro capítulo, diz a personagem/narrador no início do segundo capítulo,
para introduzir a estória:”Que é um
juiz-penitente? Ah! Deixei-o intrigado com esta história. Não coloquei nisso
malícia alguma, acredite, e posso explicar-me com mais clareza. De certa forma,
isso faz mesmo parte das minhas funções. Mas,
em primeiro lugar é necessário expor-lhe um determinado número de fatos que
ajudarão a compreender melhor a minha narrativa.”
Portanto, a estória
toda consiste em dizer o que é ser um juiz-penitente e quais fatos foram causas
para a personagem se transformar num juíz-penitente.
2.2
Três fatos essenciais.
Três fatos são essenciais para o
desenvolvimento da estória, citados a seguir, segundo a ordem em que estão no
livro:
a)
O primeiro fato essencial foi
narrado nas páginas 30 e 31: “Subira na
Pont dês Arts, àquela hora deserta, para olhar o rio que mal se advinhava na
noite que agora chegara. Em frente ao Vert-Galant, eu dominava a ilha. Sentia
crescer em mim um vasto sentimento de força e de realização, que me dilatava o
coração. Eu me endireitei e ia acender um cigarro, o cigarro da satisfação,
quando, no mesmo momento, explodiu uma gargalhada atrás de mim. Surpreendido,
fiz uma brusca meia-volta: não havia ninguém. Fui até o parapeito: nenhuma
barcaça, nenhum barco. Virei-me para a ilha e de novo ouvi o riso às minhas
costas, um pouco mais distante, como se descesse o rio. Fiquei onde estava,
imóvel. O riso diminuía, mas eu o ouvia ainda distintamente atrás de mim, vindo
de lugar nenhum, a não ser das águas. Ao mesmo tempo, sentia os batimentos
precipitados do meu coração. Compreenda-me bem, este riso nada tinha de
misterioso: era um riso bom, natural, quase amigável, que recolocava as coisas
no seu lugar. Aliás, logo depois não ouvi mais nada. Retornei ao cais, entrei
na rua Daufhine, comprei cigarros, sem necessidade alguma. Estava atordoado,
respirava com dificuldade. Nessa noite, telefonei para um amigo, que não estava
em casa. Hesitava em sair, quando, de repente, ouvi alguém ri sob a minha
janela. Abri. Com efeito, na calçada, alguns jovens despediam-se alegremente.
Dei de ombros, tornei a fechar a janela; afinal, eu tinha um processo para
estudar. Dirigi-me ao banheiro para beber um copo de água. A minha imagem
sorria no espelho, mas pareceu-me que me via com um duplo sorriso...”
b) O
segundo fato foi narrado nas páginas 52 e 53: “Naquela noite, em novembro, dois ou três anos antes da noite em que
julguei ouvir rir as minhas costas, eu voltava para a margem esquerda, para
casa, pela Ponte Royal. Passava uma hora da meia-noite, caía uma chuva miúda,
mais uma garoa, que dispersava os raros traseuntes. Acabava de deixar uma
amiginha que, com certeza, já estava dormindo. Sentia-me bem com esta
caminhada, um pouco entorpecido, o corpo acalmado, irrigado por um sangue suave
como a chuva que caia. Na ponte, passei por detrás de uma forma debruçada sobre
o parapeito e que parecia olhar o rio. De mais perto, distingui uma mulher nova
e esguia, vestida de preto. Entre os cabelos escuros e a gola do casaco, via-se
apenas uma nuca, fresca e molhada, que me sensibilizou. Mas segui meu caminho, depois
de uma hesitação. No fim da ponte, peguei o cais, em direção a Saint-Michel,
onde eu morava. Já havia percorrido uns cinqüenta metros, mais ou menos, quando
ouvi o barulho de um corpo que cai na água e que, apesar da distância, no
silêncio da noite, me pareceu grande. Parei na hora, mas sem me voltar. Quase
imediatamente, ouvi um grito, várias vezes repetido, que descia também o rio e
depois se extinguiu bruscamente. O silêncio que se seguiu na noite paralisada
pareceu-me interminável. Quis correr e não me mexi. Acho que tremia de frio e
de emoção. Dizia a mim mesmo que era preciso agir rapidamente e sentia uma
fraqueza irrestível invadir-me o corpo. Esqueci-me do que pensei então. ‘Tarde
demais, longe demais...’, ou algo do gênero. Escutava ainda, imóvel. Depois,
afastei-me sob a chuva, às pressas. Não avisei ninguém.”
c) O
terceiro foi narrado na página 82: “Um
dia, porém, no decurso de uma viagem que ofereci a uma amiga, sem lhe dizer que
o fazia para festejar minha cura, encontrei-me a bordo de um transatlântico, na
coberta, naturalmente. De repente, divisei ao largo um ponto negro no oceano
cor de ferro. Desviei os olhos imediatamente, meu coração começou a bater.
Quando me forcei a olhar, o ponto negro havia desaparecido. Ia gritar, chamar
estupidamente por socorro, quando a vê-lo. Tratava-se de um daqueles resíduos
que os navios deixam atrás de si. No entanto, eu não tinha conseguido suportar
a sua visão, havia pensado logo tratar-se de um afogado”
2.3
As relações entre os três fatos
essenciais.
A uma relação
cronológica, lógica e psicológica entre os três fatos aqui enumerados como
essenciais.
Tomando como tempo
presente o momento em que o narrador/personagem conta a sua estória, o mais
antigo foi o episódio do “corpo que caiu na água”, e depois, numa seqüência do
passado para o presente, veio o da “gargalhada que explodiu nas suas costas” e
o do “resíduo no meio do oceano”.
Entre o primeiro e o
segundo episódio havia se passado mais ou menos dois ou três anos. Este foi o
intervalo entre um e outro, porque o próprio narrador/personagem assim afirmou,
quando contou o episódio mais antigo, fazendo referência ao segundo: “Naquela noite, em novembro, dois ou três anos antes da noite em que
julguei ouvir rir as minhas costas”. Portanto, o narrador, ao contar a
sua estória, inverteu a ordem cronológica com relação aos dois episódios:
primeiro, nas páginas 30 e 31, contou o que aconteceu depois, e segundo, já nas
páginas 52 e 53, contou o que aconteceu antes.
O terceiro episódio, o
mais recente, ocorreu alguns anos depois do segundo. Ao narrar o terceiro
episódio utilizou um marcador temporal em relação ao segundo: “...aquele
grito que, anos atrás, havia ressoado às minhas costas no Sena,”.
Assim, tem-se a
seguinte linha do tempo: aconteceu o primeiro episódio: “o corpo que caiu na
água”; dois ou três anos depois, aconteceu o segundo episódio: “a gargalhada
que explodiu nas suas costas”, e anos depois, aconteceu o terceiro episódio: o
“resíduo no meio do oceano”.
Portanto, é necessário
não perder esta seqüência cronológica, que, diga-se de passagem, aparece de
maneira truncada no livro. Os episódios
não são narrados segundo ela e esta somente é revelada por pequenas frases que
o leitor pode não atribuir a devida atenção.
No livro, é de
fundamental importância localizar os pensamentos e ações do narrador/personagem
cronologicamente em relação a estes episódios: o quê pensava e fazia o
narrador/personagem antes de ocorrer o episódio mais antigo, o quê pensava e
fazia entre o mais antigo e o segundo, entre este e o terceiro, e após o
terceiro. Tais pensamentos e ações também não foram narrados numa seqüência
cronológica, situação que dificulta muito o acompanhamento da evolução da
estória.
Mas ao se separar os
três episódios e os reordenar cronologicamente, constata-se também a existência
de uma seqüência lógica de causa e efeito. Dentre os três fatos essenciais, os
mais antigos são causas cujos efeitos são os mais recentes.
Primeiro, em razão da
referência temporal que o narrador ligou um episódio ao outro, demonstrando que
na sua memória estes episódios possuem uma relação de desdobramento. O primeiro
mais ou menos dois anos antes do segundo e o terceiro alguns anos depois do
segundo.
Segundo, em razão da
idêntica seqüência de acontecimentos existentes entre o primeiro e o segundo
episódio, que assim segue: noite, narrador/personagem na ponte, acontecimento
nas suas costas (riso/corpo que cai), corpo/riso que desce o rio;
narrador/personagem volta para casa atordoado.
Terceiro, idêntica
forma para os três episódios: algo desesperador que acontece na água (rio/oceano), relativamente longe do
poder de ação do narrador/personagem, mas de algum modo a ele perceptível.
Quarto, o objeto de um
episódio se transmuta para o outro com um caráter menos objetivo: de corpo a
riso e de riso a ilusão.
E quinto, de um
episódio para outro há um acréscimo de significado. No primeiro, a paralisia
impotente diante do fato: “Quis correr e
não me mexi. Acho que tremia de frio e de emoção. Dizia a mim mesmo que era
preciso agir rapidamente e sentia uma fraqueza irrestível invadir-me o corpo”.
No segundo, o riso irônico e esclarecedor de algo que, a rigor, não é
engraçado: “Compreenda-me bem, este riso
nada tinha de misterioso: era um riso bom, natural, quase amigável, que
recolocava as coisas no seu lugar[...] Dirigi-me ao banheiro para beber um copo
de água. A minha imagem sorria no espelho, mas pareceu-me que me via com um
duplo sorriso...”. No terceiro, o sentimento inescapável de culpa: “aquele grito que, anos atrás, havia ressoado
às minhas costas no Sena, levado pelo rio em direção as águas da Mancha, não
havia deixado de caminhar pelo mundo, através da vastidão ilimitada do oceano,
e que tinha me esperado até aquele dia em que o encontrara”.
2.4
A essencialidade dos três fatos.
Quanto à afirmação de
que os três fatos mencionados são notas essenciais para a estória narrada no
livro, primeiro se deve colocar o significado de essência. Bom conceito de
essência é aquele em que se afirma o seguinte: essência é tudo aquilo sem o
qual uma coisa deixa de ser o que é. Portanto, quando se afirma que os três
fatos são essenciais para a estória é porque sem eles a estória não seria tal como
ela é.
No caminho percorrido
pelo narrador/personagem para se transformar num juiz penitente estão os três
fatos como causas propulsoras.
O narrador/personagem
conta uma série de pequenos fatos para concluir de modo genérico sobre como ele
era antes da ocorrência do primeiro fato essencial.
O pequenos fatos são os
seguintes: defendia as viúvas e órfãos com a sensação de que os réus eram um
pouco vítimas (pág. 15 e 16); nunca cobrou dos pobres (pág. 17); adorava ajudar
os cegos a atravessar a rua e praticava outros tipos de pequenas ajudas a
transeuntes (pág. 18); praticava todo tipo de pequenas cortesias a exemplo de
ceder lugar no ônibus a quem necessitasse (pág. 18); era generoso e dava
dinheiro com facilidade (pág.19); freqüentava muitas festas e dançava a noite
inteira (pág. 24); cuidou de um amigo que lhe evitava, quando da sua agonia
terminal (pág. 27); visitou a viúva do porteiro para receber os seus
agradecimentos de atriz de tragédia (fls. 28); foi ao enterro de um amanuense
que ele desprezava apenas para ser notado e receber comentários favoráveis
(fls. 28 e 29); onde quer que trabalhasse, apertava a mão de todos para
angariar a simpatia, que era necessária a sua felicidade (fls. 28).
Daí, concluiu de modo
genérico sobre si próprio o seguinte: era satisfeito consigo mesmo e era
irrepreensível na vida profissional (pág. 17); não estava se vangloriando, pois
visava mais alto (pág. 17); a prática das pequenas ajudas, cortesias e
generosidades lhe provocavam grande satisfação. (pág. 19); ele se sentia acima
do juiz e do réu, nunca devia nada a ninguém e muitos deviam a ele; ele vivia
impunemente; ele se sentia como um deus (pag. 21); achava que desse modo vivia
no Éden (pág. 22); disse que poucos seres terão sido mais naturais do que ele,
pois possuía a harmonia e o auto-crontole. (pág. 23); achava-se um super-homem
(pág. 24); às vezes sentia ser uma espécie de filho de rei, embora seus
ascendentes fossem plebeus. (pág. 24); sentia-se um eleito para este longo e
constante êxito. (pág. 24); mesmo assim, seu desejo por satisfação e alegria
era insaciável (pág. 24).
Em síntese, era um
homem superficial, satisfeito consigo mesmo, que aparentemente vivia praticando
as virtudes cristãs e se vangloriava sobre isso.
Numa noite, porém, ocorreu
o primeiro fato essencial e a sua vida e personalidade sofreu certo desvio de
rota. Atravessando uma ponte em Paris, no cume de tais sensações, acabou por
presenciar um suicídio ou algo parecido e, para seu próprio espanto, sem esboçar qualquer ato de
compaixão. Não é absurdo considerar que a personagem praticou um crime de omissão
de socorro.
De homem seguro de si,
então, se transformou num homem desconfiado de si mesmo. Passou a vislumbrar
que, no íntimo, seus pensamentos e ações se dirigiam exclusivamente para
satisfazer o seu orgulho e egoísmo, sendo assim, eram contrários àqueles tidos
como universalmente corretos. Ele representava o papel de bom homem, apenas com
o objetivo de obter o sucesso e a aceitação de todos; no fundo, não possuía
amor por ninguém, a não ser por ele próprio, e em nome desse amor era
indiferente à existência de qualquer pessoa.
Assim descreveu na
página 52 a descoberta sobre si próprio, que não mais lhe “largou desde aquela aventura”. A “aventura”, num tom evidentemente irônico, é
o episódio do corpo que caiu na água:
“Ah!
Não sinto nenhum prazer especial, acredite-me, em contar-lhe isto. Quanto penso
neste período em que eu pedia tudo, sem nenhuma compensação de minha parte, em
que mobilizava tantos seres para me servir, em que os colocava, de certo modo,
na geladeira, para um dia ou outro tê-los à mão conforme a minha convenviência,
não sei que nome dar ao curioso sentimento que me invade. Não será vergonha? A
vergonha, diga-me meu caro compatriota, ela não queima um pouco? Sim? Então,
talvez se trate dela ou de um desses sentimentos ridículos, que dizem respeito
a honra. Parece-me, em todo o caso, que
este sentimento nunca mais me largou desde aquela aventura, que eu encontrei no
centro de minha memória e cuja narração não posso adiar mais, apesar das minhas
digressões e dos esforços de uma inventiva à qual, espero, fará justiça.”
Ponto importante, que revela a essencialidade
do primeiro fato é, inclusive, a afirmativa do narrador personagem de que o citado
fato se encontra no centro de sua memória. Logo, todo o seu ser sofreu a
influência disso que não por outras razões se encontra no centro de sua
memória.
Então, em meio a
desconfortáveis descobertas, num crescendo, ocorreu o segundo fato essencial –
o episódio do riso que explodiu nas suas costas.
A partir deste dia, a
personagem recuperou a memória de todos os seus atos e de quais sentimentos e
princípios os norteavam, sob a ótica de uma honestidade implacável. Descobriu o
quanto era desprezível.
Esse é o resumo das suas
memórias implacáveis: passou a ter “dificuldades com o bom humor” (pág. 33); afirmou
que gostava de todas as ilhas porque era mais fácil imperar nelas (pág. 34); disse
que sua insígnia tem duas faces com o lema “não confie”; que no seu cartão de
visita profissional está escrito “ator” (pág. 37); que quando deixava um cego
do outro lado da calçada, saudava o público como quem representava um papel
(fls. 37); que quando ajudou um motorista, por lapso, disse que ninguém teria
feito o mesmo (fls. 37); que quando sua memória melhorou, se lembrou de que se
comportou como uma criatura digna de pena numa discussão de trânsito (fls. 41 e
42); que se relacionava com as mulheres para satisfazer os seus interesses
pessoais (fls. 44); que na sua vida teve um único grande amor: ele mesmo (fls.
44); que se dedicava tanto a sensualidade que largava pai e mãe por uma
aventura (fls. 45); que transou com uma mulher e, quando ela comentou sobre seu
mau desempenho na casa, seduziu-a de novo se redimindo do fracasso e, quando
ela o elogiou, ele a abandonou de repente (fls. 48 e 49).
E essas são as
conclusões deduzidas por sua honestidade intelectual: a vida se tornou menos
fácil. (pág. 34); parecia que tinha desaprendido a viver (pág. 34); sempre um
poço de vaidade (fls. 37); eu eu eu, eis o refrão da sua preciosa vida (fls.
37); só conseguia falar me vangloriando (fls. 37); sempre se achou mais
inteligente que todo mundo, mais sensível, mais hábil, atirador de elite,
melhor piloto e melhor amante (fls. 37); sempre se esquecia de tudo que não
fosse seu próprio eu (pág. 39); pouco a pouco sua memória voltou (pág. 39); uma
briga de rua e sua humilhação lhe provaram que ele não queria ser bom,
inteligente e generoso, mas queria era dominar os outros. (fls. 42); descobriu
em si “agradáveis sonhos de opressão” (fls. 43); só ficava do lado dos
criminosos porque eles não eram as vítimas, mas quando eram vítimas, queria
mesmo era atacar o delinqüente (fls. 43); nunca se preocupou com os grandes
problemas a não ser no intervalo dos seus desregramentos (fls. 46).
Na página 38, diz,
categoricamente, que a memória implacável e o julgamento com honestidade
intelectual, à pouco referido, decorreu do segundo fato essencial – o episódio
do riso que explodiu nas suas costas, aqui mencionado como “a noite de que lhe falei”:
“Com
algumas outras verdades, descobri, pouco a pouco, estas evidências, durante o
período que se seguiu à noite de que lhe falei. Não imediatamente, não, não,
nem com muita nitidez. Foi preciso, primeiro, recuperar a memória
Gradativamente, fui vendo mais claro, aprendi um pouco do que sabia. Até então,
tinha sido sempre ajudado por um espantoso poder de esquecimento.”
Em face dessas verdades
reagiu de vários modos, de acordo com as distintas ocasiões e variação do seu
humor.
Primeiro, numa atitude
de rebeldia, como quem diz “chega de representações e a partir de hoje serei eu
mesmo” passou a se comportar de modo diferente do habitual, chocando aqueles
que o conhecia.
Esses foram os atos
surpreendentes e irreconhecíveis: tinha a sensação de que todos o julgavam e
que sorriam dele. (fls. 60); tinha a impressão que lhe davam rasteira e chegou
a cair estatelado no chão (fls. 60); começou a descobrir que tinha inimigos
entre pessoas que nem sequer conhecia (fls. 60), começou a tratar mal os
mendigos e a escrever uma ode a polícia e uma apoteose as guilhotina (fls. 70);
passou a ficar obcecado pela morte (fls. 68); dizia “Graças a Deus” em reuniões
de humanistas. (fls. 70); não tinha mais amigos (fls. 56); representava o tempo
inteiro (fls. 66); queria confessar a verdade sobre si mesmo, mas não a Deus,
por que se sentia acima Dele (fls. 68); quanto mais lhe elogiavam, mas a
verdade se tornava insuportável (fls. 69); pensou em se revelar de vez e
praticar vários atos malignos (fls. 69); queria perturbar o jogo e destruir sua
reputação lisonjeira (fls. 70); o riso continuava a flutuar sobre sua vida
(fls.72).
Segundo,
sem querer se desvencilhar do orgulho e egoísmo, tentou fugir da culpa e da
verdade através de uma entrega completa a ações inebriantes: procurou o amor
das mulheres, a castidade, a libertinagem e o alcoolismo.
Decidiu
abandonar o convívio dos homens (Pág. 75); como fuga, passou a buscar o amor
das mulheres (Pág. 75); viveu uma falsa paixão por uma leitora de revistas femininas,
mas descobriu que ela era uma serpente (Pág. 76); ainda em fuga, tentou viver
uma vida de castidade (Pág. 77); continuando a fugir, buscou a libertinagem (Pág.
77); ainda em fuga, se entregou a bebedeira (Pag. 80); o proveito dessa vida
dissoluta era que o prazer excessivo delimitava a imaginação e o julgamento (Pág.
80); na vida de orgia, ele “vivia em uma espécie de nevoeiro, onde o riso era
abafado” (Pág. 81); essa vida, entretanto, começou a comprometer o seu trabalho
(Pág. 81); deixou de ter vida social (Pág. 81).
Mas novamente se
deparou com a cena da omissão de socorro, quando, numa viagem de navio ocorreu
o terceiro fato essencial – o episódio do resíduo no meio do oceano. Assim
chegou a seguintes constatações nas páginas 82 e 83:
“Compreendi,
então, sem revolta, como nos resignamos a uma idéia, cuja verdade se conhece há
muito tempo, e que aquele grito que, anos atrás, havia ressoado às minhas
costas no Sena, levado pelo rio em direção as águas da Mancha, não havia
deixado de caminhar pelo mundo, através da vastidão ilimitada do oceano, e que
tinha me esperado até aquele dia em que o encontrara. Compreendi, também, que ele
continuaria a esperar-me nos mares e nos rios, por toda parte, enfim, onde se
encontrasse a água do meu batismo. (...).
Acabara-se
a vida gloriosa, mas também a raiva e os sobressaltos. Era preciso submeter-se
e reconhecer a culpa. Era preciso viver no desconforto”.
Por fim o
personagem/narrador se transformou num juiz-penitente.
2.5. O que é ser um
juiz-penitente.
Nas páginas 104 e 105 a
personagem define com exatidão o ofício de juiz-penitente:
“Exerço,
pois, no Mexico-City, há algum tempo, a minha útil profissão. Esta consiste, em
primeiro lugar, como o senhor já viu por experiência própria, em praticar a
confissão pública com a maior freqüência possível. Acuso-me de alto a baixo.
Não é difícil, agora já tenho memória. Mas, cuidado, não me acuso
grosseiramente, batendo com força no peito. Não, navego com jeito, multiplico
as sutilezas, às digressões também, adapto, enfim, o meu discurso ao ouvinte,
conduzo este último a pedir mais alto. Misturo o que me diz respeito e o que se
refere aos outros. Pego os traços comuns, as experiências que sofremos juntos,
as fraquezas que partilhamos, o bom-tom, o homem do dia, enfim, tal como se
manifesta em mim e nos outros. Com isso, monto um retrato que é o de todos e o
de ninguém. Uma máscara, em suma, bastante semelhante às do carnaval, ao mesmo
tempo fiéis e simplificadas, e diante das quais dizemos: ‘Olhe, eu já o vi
antes’. Quando o retrato esta terminado, como nesta noite, mostro-o, cheio de
desolação: ‘Aqui está, ai de mim, o que sou. O requisitório acabou. Mas, ao
mesmo tempo, o retrato que eu apresento aos meus contemporâneos torna-se um
espelho’.
Coberto
de cinzas, arrancando lentamente os cabelos, o rosto arado pelas unhas, mas com
o olhar penetrante, mantenho-me ante a humanidade inteira, recapitulando as
minhas vergonhas, sem perder de vista o efeito que produzo, e dizendo: ‘Eu era
o último dos últimos’. Então, insensivelmente, passo, no meu discurso, do ‘eu’
ao ‘nós’. Quando chego ao ‘eis o que nós somos’ a sorte está lançada, posso
dizer-lhe as suas verdades. Sou como eles, é certo, estamos no mesmo barco.”
A atividade do
juiz-penitente se divide, portanto, em dois passos básicos, que são a “pintura
do retrato” e a “transformação do retrato num espelho”.
A “pintura do retrato”,
por sua vez, é composta de três partes: o inventário dos “defeitos de si
próprio”, “os que se referem aos outros’ e ‘os que são traços comuns”.
Utiliza-se, para isso,
de um método meio racional, meio confuso, meio adaptativo. Diz o personagem: “navego com jeito, multiplico as sutilezas,
às digressões também, adapto, enfim, o meu discurso ao ouvinte...”.
Multiplicar as sutilezas significa utilizar-se de um método racional para
enumerar e discorrer sobre o máximo de aspectos que compõe um determinado fato.
Multiplicar as digressões, por sua vez, significar interpolar a dissertação
sobre o tema principal com a narrativa de outros fatos e opiniões de modo a
causar certa confusão no ouvinte. Já adaptar o discurso ao ouvinte, significa
dosar e conduzir as sutilezas e digressões para a posição onde se localiza a
personalidade daquele que ouve.
A narrativa principal
da personagem é a estória da sua própria vida, a qual é contada com todas as
sutilezas que o método racional abarca. As interpolações da narrativa principal
são os fatos e opiniões sobre os defeitos dos outros e do que é experiência
comum. E a adaptação consiste em conduzir tudo isso para a identificação com a
própria personalidade do ouvinte.
A “pintura do retrato”,
portanto, fica bastante crível, pois apela para a razão do ouvinte com aquilo
que é mais caro a razão: a coerência e a honestidade intelectual. Ora, quando a
personagem fala sobre os seus erros fundamentais, enfatizando todas as
sutilezas que os compõe, aos olhos do ouvinte, ele presta talvez a maior
homenagem que se pode prestar a razão, e com este ato se investe de uma aura de
honestidade intelectual que torna o seu discurso perfeito.
Mas esta é apenas uma
parte do retrato, a parte por assim dizer possuidora de substrato. A esta parte,
a personagem deseja colar outra, que deve se sustentar no substrato daquela.
Para isso, metodologicamente, esta não pode ser exposta num bloco unitário,
pois restaria patente a sua carência de fundamentação. Então, para se sustentar
no substrato da outra vem misturada na outra, dissolvida na outra, de modo que
a razão e a honestidade intelectual que sustenta a outra também sirvam para
sustentar esta aos olhos do ouvinte.
Assim é porque o
objetivo da personagem com a “pintura do retrato” é formar a feição de um homem
sem identidade, que possui uma certa carga de concretude, dada pela narrativa
dos seus erros fundamentais, mas que também possua uma carga de abstração, dada
pelos erros dos outros e pelas experiências comuns. Diz a personagem que “Com isso, monto um retrato que é o de todos
e o de ninguém. Uma máscara, em suma, bastante semelhante às do carnaval, ao
mesmo tempo fiéis e simplificadas...”
Assim, pintado o
retrato, passa-se então para a “transformação do retrato num espelho”.
Significa dizer que o próximo passo da personagem é afirmar, num giro de cento
e oitenta graus, que em verdade, desde o início, não se tratava de uma pintura
de retrato, mas sim que o interlocutor ouvia a descrição da própria face que
para ele se refletia do espelho. O conjunto de erros compunha a própria
personalidade do interlocutor.
Este, então, convencido
pela razão e persuadido pela honestidade intelectual, aceita como se fosse o
seu rosto a máscara pintada pela personagem e pronto, o terreno foi adubado
adequadamente para o julgamento do juiz-penitente. “Quando chego ao ‘eis o que nós somos’ a sorte está lançada, posso dizer-lhe as suas verdades. A
personagem poderá enumerar mais verdades aplicadas especificamente ao
interlocutor.
2.6 Qual é o objetivo
do juiz-penitente
Logo depois de narrar o
que é ser um juiz-penitente, a personagem diz para que serve este ofício. Há,
portanto, um objeto imediato e um objetivo mediato. O imediato é aquele
perseguido pela personagem como efeito direto da sua prática, já o mediato é
efeito produzido pela consecução dos imediatos.
Assim diz a personagem
quanto aos objetivos imediatos (pág. 105):
“O
senhor vê a vantagem, disto tenho certeza. Quanto mais me acuso, mais tenho o
direito de julgar os outros. Melhor, provoco as pessoas no sentido de julgarem
a si próprias, o que me consola igualmente.”
Portanto, dois são os
efeitos imediatos: aquisição do direito de julgar os outros e a provocação do
julgamento de si próprios pelos outros. A rigor, entretanto, há apenas um
efeito que se manifesta de dois modos, senão vejamos: o primeiro modo, “julgamento
dos outros”, decorre do convencimento que confere o direito adquirido pela
personagem junto à consciência de quem houve, e este convencimento decorre da
razão parcial e da suposta honestidade intelectual que a personagem utiliza
para formular as suas acusações; o segundo modo, por sua vez, “o julgamento de
si próprio”, é o outro de outro modo, porque a razão parcial e a suposta
honestidade intelectual da personagem, depois de percorrido todo o seu caminho
do convencimento, são transplantadas para dentro da consciência do ouvinte e
passa então a ser o discurso interno da personagem no centro da alma do
ouvinte, daí porque pensa que é ele mesmo (ouvinte) que formula um julgamento
sobre seus atos e pensamentos, mas é apenas a voz da personagem manifestada
internamente na consciência do ouvinte.
Os objetivos mediatos
são revelados nas seguintes passagens (pág. 106 e 107):
“Não
mudei de vida, continuo a amar-me e a me servir dos outros.
(...)
Desde
que encontrei a minha solução, abandono-me a tudo, às mulheres, ao orgulho, ao
tédio, ao ressentimento, e até a febre que, com deleite, sinto subir neste
momento. Impero, enfim, mas para sempre. Encontrei novamente um cimo, onde sou
o único a escalar e de onde posso julgar todo mundo.”
A
partir desta noite, aliás, vou recomeçar. Não consigo deixar de fazê-lo, nem
privar-me desses momentos em que um deles desaba, com a ajuda do álcool, e bate
no peito. Então eu cresço, meu caro, eu cresço, respiro livremente, estou sobre
a montanha, a planície estende-se sob meus olhos. Que embriaguez sentimo-nos
Deus-pai e distribuir atestados definitivos de má conduta e maus costumes. Eu
pontifico entre os meus anjos vis, no alto do céu holandez, vejo subir até mim,
saindo das brumas e da água, a multidão do Juízo Final.
Estes, portanto, são os
fins últimos da personagem. O julgamento dos outros e a provocação nos outros
do julgamento de si mesmos são ainda caminhos para onde a personagem quer
chegar. Ela quer triunfar psicologicamente sobre todos os seus interlocutores e de um
modo semelhante ao triunfo de Deus-pai no Juízo Final.
Ressalta-se aqui apenas
um erro teológico: quem julga no Juízo final é Deus-filho e não Deus-pai.
Verifica-se, portanto,
que a personagem não mudou de vida, mas apenas de método. Antes, relacionava-se
com o outro pautado na prática da distribuição do bem. Caiu em si e percebeu
que aquela prática era mera representação externa para triunfar sobre todos,
com o objetivo de satisfazer seu orgulho e egoísmo, pois queria ser para todos
uma espécie de Deus. Percebeu que este “cair em si” era um tipo de ‘julgamento
racional e honesto sobre si mesmo”, portanto, “julgamento verdadeiro”, e que
isto significava entrar na posse de algo que lhe permitiria de um outro modo
triunfar sobre todos semelhantemente a Deus: assim como nada escapa dos olhos
de Deus, nada escaparia da razão e honestidade de Jean-Batiste. Daí porque muda
o seu método de triunfo para o julgamento.
Dos dois atributos de
Deus: a distribuição dos bens e o julgamento, Jean-Baptiste percebeu que sua
alma nada tinha a ver com um (distribuição dos bens), mas que tinha certo
pendor para o outro (o julgamento).
Mas porque distribuir
condenações e não salvações? Porque a única verdade com substrato no discurso,
cujo substrato é utilizado para sustentar todas as outras proposições, é a
verdade da condenação de si próprio: “ora, se eu sou condenado, você é
condenado e se nós somos condenados, a espécie humana é condenada”.
Na distribuição dos
bens, a personagem percebeu que era um Deus de barro; no julgamento, percebeu
que era um Deus manco. Concluiu daí que é mais crível um Deus manco que um Deus
de barro. Passou então a ser um Deus manco para satisfazer o seu único desejo,
o desejo da sua vida inteira, que é ser um Deus triunfante.