quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Comentários Sobre o Livro “A Queda” de Albert Camus


 
1.      A estrutura do livro “A Queda”.

 

O livro de Albert Camus, “A Queda”, deve ser classificado, dentre os gêneros literários, como livro de ficção.  Afasto o problema de classificá-lo, dentre as espécies de ficção, como romance ou novela. Esta é uma questão formal que interessa aos especialistas da área de letras.

 

Mas é importante classificá-lo como ficção porque nele essencialmente há a narrativa da estória de uma personagem. Sua narrativa, entretanto, transcorre de um modo ultra-subjetivo, pois o autor concedeu à referida personagem o exclusivo poder para contar fatos e ações sobre si própria e sobre terceiros. É dela a única voz que soa do começo ao fim do livro e, flagrantemente, ela conta tudo sob a influência do seu estado emocional.

 

Entretanto, a personagem ultrapassa a narrativa de fluxo emocional, pois ao mesmo tempo constrói argumentos e afirma regras gerais e abstratas de maneira sistemática sobre as relações e a natureza humana, daí porque, dentro do romance, o autor colocou na boca da personagem uma espécie de ensaio filosófico.

 

Assim, para facilitar a compreensão do livro, divido-o em duas grandes partes: “O romance” e o “O ensaio filosófico”.

 

O romanesco é composto pela narrativa de fatos passados e outros ocorridos no presente, estes contrapondo aqueles: os fatos do passado servem para revelar como era a personagem e os fatos do presente, para expor as drásticas mudanças sofridas pelo mesmo. Mas, de logo, afirmo que a multiplicidade dos contrapontos não exclui a manutenção de um caráter único esboçado pela personagem.

 

O filosófico se subdivide em argumentos de “julgamento” e de “penitência”, são estes os termos justapostos pela personagem para se autodenominar “juiz-penitente”, aquele que julga e ao mesmo tempo cumpri a pena. “O julgamento” se compõe de afirmações sobre seu próprio comportamento e sua natureza; sobre o comportamento e a natureza das pessoas e sobre o comportamento e a natureza humana. São, portanto, três tipos de afirmações distintas, que seguem uma progressão do individual para o geral e do geral para o abstrato, ao modo da seguinte fórmula: ”se eu sou assim, então as pessoas são assim; e se as pessoas são assim, então esta é a natureza humana”. “A penitência”, de outra parte, se divide em afirmações que justificam a vida da personagem no “desconforto” e que justificam a vida de todos no mesmo “desconforto”.

 

O romanesco e o filosófico se articulam, por fim, numa correlação indutiva. A diversidade dos fatos passados e presentes, partes do romanesco, são fundamentos para as afirmações de caráter geral e abstrato constitutivas do julgamento e da penitência, partes do filosófico. 

 

2.      O Romance

 

2.1  Enredo.

 

Caminhando pelas ruas de Amsterdam ou sentados numa mesa de bar, o Sr. Jean Bastiste, um advogado parisiense, narra a um seu compatriota os motivos pelos quais ele se transformou num “juiz-penitente” e o que ser um “juiz-penitente”.

 

Depois de algumas divagações e da afirmação de que é um “juiz-penitente”, que ao todo constitui o primeiro capítulo, diz a personagem/narrador no início do segundo capítulo, para introduzir a estória:”Que é um juiz-penitente? Ah! Deixei-o intrigado com esta história. Não coloquei nisso malícia alguma, acredite, e posso explicar-me com mais clareza. De certa forma, isso faz mesmo parte das minhas funções. Mas, em primeiro lugar é necessário expor-lhe um determinado número de fatos que ajudarão a compreender melhor a minha narrativa.”

 

Portanto, a estória toda consiste em dizer o que é ser um juiz-penitente e quais fatos foram causas para a personagem se transformar num juíz-penitente.    

 

2.2  Três fatos essenciais.

 

Três fatos são essenciais para o desenvolvimento da estória, citados a seguir, segundo a ordem em que estão no livro:

 

a)      O primeiro fato essencial foi narrado nas páginas 30 e 31: “Subira na Pont dês Arts, àquela hora deserta, para olhar o rio que mal se advinhava na noite que agora chegara. Em frente ao Vert-Galant, eu dominava a ilha. Sentia crescer em mim um vasto sentimento de força e de realização, que me dilatava o coração. Eu me endireitei e ia acender um cigarro, o cigarro da satisfação, quando, no mesmo momento, explodiu uma gargalhada atrás de mim. Surpreendido, fiz uma brusca meia-volta: não havia ninguém. Fui até o parapeito: nenhuma barcaça, nenhum barco. Virei-me para a ilha e de novo ouvi o riso às minhas costas, um pouco mais distante, como se descesse o rio. Fiquei onde estava, imóvel. O riso diminuía, mas eu o ouvia ainda distintamente atrás de mim, vindo de lugar nenhum, a não ser das águas. Ao mesmo tempo, sentia os batimentos precipitados do meu coração. Compreenda-me bem, este riso nada tinha de misterioso: era um riso bom, natural, quase amigável, que recolocava as coisas no seu lugar. Aliás, logo depois não ouvi mais nada. Retornei ao cais, entrei na rua Daufhine, comprei cigarros, sem necessidade alguma. Estava atordoado, respirava com dificuldade. Nessa noite, telefonei para um amigo, que não estava em casa. Hesitava em sair, quando, de repente, ouvi alguém ri sob a minha janela. Abri. Com efeito, na calçada, alguns jovens despediam-se alegremente. Dei de ombros, tornei a fechar a janela; afinal, eu tinha um processo para estudar. Dirigi-me ao banheiro para beber um copo de água. A minha imagem sorria no espelho, mas pareceu-me que me via com um duplo sorriso...”

 

b)      O segundo fato foi narrado nas páginas 52 e 53: “Naquela noite, em novembro, dois ou três anos antes da noite em que julguei ouvir rir as minhas costas, eu voltava para a margem esquerda, para casa, pela Ponte Royal. Passava uma hora da meia-noite, caía uma chuva miúda, mais uma garoa, que dispersava os raros traseuntes. Acabava de deixar uma amiginha que, com certeza, já estava dormindo. Sentia-me bem com esta caminhada, um pouco entorpecido, o corpo acalmado, irrigado por um sangue suave como a chuva que caia. Na ponte, passei por detrás de uma forma debruçada sobre o parapeito e que parecia olhar o rio. De mais perto, distingui uma mulher nova e esguia, vestida de preto. Entre os cabelos escuros e a gola do casaco, via-se apenas uma nuca, fresca e molhada, que me sensibilizou. Mas segui meu caminho, depois de uma hesitação. No fim da ponte, peguei o cais, em direção a Saint-Michel, onde eu morava. Já havia percorrido uns cinqüenta metros, mais ou menos, quando ouvi o barulho de um corpo que cai na água e que, apesar da distância, no silêncio da noite, me pareceu grande. Parei na hora, mas sem me voltar. Quase imediatamente, ouvi um grito, várias vezes repetido, que descia também o rio e depois se extinguiu bruscamente. O silêncio que se seguiu na noite paralisada pareceu-me interminável. Quis correr e não me mexi. Acho que tremia de frio e de emoção. Dizia a mim mesmo que era preciso agir rapidamente e sentia uma fraqueza irrestível invadir-me o corpo. Esqueci-me do que pensei então. ‘Tarde demais, longe demais...’, ou algo do gênero. Escutava ainda, imóvel. Depois, afastei-me sob a chuva, às pressas. Não avisei ninguém.”

 

c)      O terceiro foi narrado na página 82: “Um dia, porém, no decurso de uma viagem que ofereci a uma amiga, sem lhe dizer que o fazia para festejar minha cura, encontrei-me a bordo de um transatlântico, na coberta, naturalmente. De repente, divisei ao largo um ponto negro no oceano cor de ferro. Desviei os olhos imediatamente, meu coração começou a bater. Quando me forcei a olhar, o ponto negro havia desaparecido. Ia gritar, chamar estupidamente por socorro, quando a vê-lo. Tratava-se de um daqueles resíduos que os navios deixam atrás de si. No entanto, eu não tinha conseguido suportar a sua visão, havia pensado logo tratar-se de um afogado”

 

2.3  As relações entre os três fatos essenciais.

 

A uma relação cronológica, lógica e psicológica entre os três fatos aqui enumerados como essenciais.

 

Tomando como tempo presente o momento em que o narrador/personagem conta a sua estória, o mais antigo foi o episódio do “corpo que caiu na água”, e depois, numa seqüência do passado para o presente, veio o da “gargalhada que explodiu nas suas costas” e o do “resíduo no meio do oceano”.

 

Entre o primeiro e o segundo episódio havia se passado mais ou menos dois ou três anos. Este foi o intervalo entre um e outro, porque o próprio narrador/personagem assim afirmou, quando contou o episódio mais antigo, fazendo referência ao segundo: “Naquela noite, em novembro, dois ou três anos antes da noite em que julguei ouvir rir as minhas costas”. Portanto, o narrador, ao contar a sua estória, inverteu a ordem cronológica com relação aos dois episódios: primeiro, nas páginas 30 e 31, contou o que aconteceu depois, e segundo, já nas páginas 52 e 53, contou o que aconteceu antes.

 

O terceiro episódio, o mais recente, ocorreu alguns anos depois do segundo. Ao narrar o terceiro episódio utilizou um marcador temporal em relação ao segundo: “...aquele grito que, anos atrás, havia ressoado às minhas costas no Sena,”.

 

Assim, tem-se a seguinte linha do tempo: aconteceu o primeiro episódio: “o corpo que caiu na água”; dois ou três anos depois, aconteceu o segundo episódio: “a gargalhada que explodiu nas suas costas”, e anos depois, aconteceu o terceiro episódio: o “resíduo no meio do oceano”.

 

Portanto, é necessário não perder esta seqüência cronológica, que, diga-se de passagem, aparece de maneira truncada no livro.  Os episódios não são narrados segundo ela e esta somente é revelada por pequenas frases que o leitor pode não atribuir a devida atenção.

 

No livro, é de fundamental importância localizar os pensamentos e ações do narrador/personagem cronologicamente em relação a estes episódios: o quê pensava e fazia o narrador/personagem antes de ocorrer o episódio mais antigo, o quê pensava e fazia entre o mais antigo e o segundo, entre este e o terceiro, e após o terceiro. Tais pensamentos e ações também não foram narrados numa seqüência cronológica, situação que dificulta muito o acompanhamento da evolução da estória.

 

Mas ao se separar os três episódios e os reordenar cronologicamente, constata-se também a existência de uma seqüência lógica de causa e efeito. Dentre os três fatos essenciais, os mais antigos são causas cujos efeitos são os mais recentes.

 

Primeiro, em razão da referência temporal que o narrador ligou um episódio ao outro, demonstrando que na sua memória estes episódios possuem uma relação de desdobramento. O primeiro mais ou menos dois anos antes do segundo e o terceiro alguns anos depois do segundo.

 

Segundo, em razão da idêntica seqüência de acontecimentos existentes entre o primeiro e o segundo episódio, que assim segue: noite, narrador/personagem na ponte, acontecimento nas suas costas (riso/corpo que cai), corpo/riso que desce o rio; narrador/personagem volta para casa atordoado.

 

Terceiro, idêntica forma para os três episódios: algo desesperador que acontece  na água (rio/oceano), relativamente longe do poder de ação do narrador/personagem, mas de algum modo a ele perceptível.

          

Quarto, o objeto de um episódio se transmuta para o outro com um caráter menos objetivo: de corpo a riso e de riso a ilusão. 

 

E quinto, de um episódio para outro há um acréscimo de significado. No primeiro, a paralisia impotente diante do fato: “Quis correr e não me mexi. Acho que tremia de frio e de emoção. Dizia a mim mesmo que era preciso agir rapidamente e sentia uma fraqueza irrestível invadir-me o corpo”. No segundo, o riso irônico e esclarecedor de algo que, a rigor, não é engraçado: “Compreenda-me bem, este riso nada tinha de misterioso: era um riso bom, natural, quase amigável, que recolocava as coisas no seu lugar[...] Dirigi-me ao banheiro para beber um copo de água. A minha imagem sorria no espelho, mas pareceu-me que me via com um duplo sorriso...”. No terceiro, o sentimento inescapável de culpa: “aquele grito que, anos atrás, havia ressoado às minhas costas no Sena, levado pelo rio em direção as águas da Mancha, não havia deixado de caminhar pelo mundo, através da vastidão ilimitada do oceano, e que tinha me esperado até aquele dia em que o encontrara”.

 

2.4  A essencialidade dos três fatos.

 

Quanto à afirmação de que os três fatos mencionados são notas essenciais para a estória narrada no livro, primeiro se deve colocar o significado de essência. Bom conceito de essência é aquele em que se afirma o seguinte: essência é tudo aquilo sem o qual uma coisa deixa de ser o que é. Portanto, quando se afirma que os três fatos são essenciais para a estória é porque sem eles a estória não seria tal como ela é.

 

No caminho percorrido pelo narrador/personagem para se transformar num juiz penitente estão os três fatos como causas propulsoras.

 

O narrador/personagem conta uma série de pequenos fatos para concluir de modo genérico sobre como ele era antes da ocorrência do primeiro fato essencial.

 

O pequenos fatos são os seguintes: defendia as viúvas e órfãos com a sensação de que os réus eram um pouco vítimas (pág. 15 e 16); nunca cobrou dos pobres (pág. 17); adorava ajudar os cegos a atravessar a rua e praticava outros tipos de pequenas ajudas a transeuntes (pág. 18); praticava todo tipo de pequenas cortesias a exemplo de ceder lugar no ônibus a quem necessitasse (pág. 18); era generoso e dava dinheiro com facilidade (pág.19); freqüentava muitas festas e dançava a noite inteira (pág. 24); cuidou de um amigo que lhe evitava, quando da sua agonia terminal (pág. 27); visitou a viúva do porteiro para receber os seus agradecimentos de atriz de tragédia (fls. 28); foi ao enterro de um amanuense que ele desprezava apenas para ser notado e receber comentários favoráveis (fls. 28 e 29); onde quer que trabalhasse, apertava a mão de todos para angariar a simpatia, que era necessária a sua felicidade (fls. 28).

 

Daí, concluiu de modo genérico sobre si próprio o seguinte: era satisfeito consigo mesmo e era irrepreensível na vida profissional (pág. 17); não estava se vangloriando, pois visava mais alto (pág. 17); a prática das pequenas ajudas, cortesias e generosidades lhe provocavam grande satisfação. (pág. 19); ele se sentia acima do juiz e do réu, nunca devia nada a ninguém e muitos deviam a ele; ele vivia impunemente; ele se sentia como um deus (pag. 21); achava que desse modo vivia no Éden (pág. 22); disse que poucos seres terão sido mais naturais do que ele, pois possuía a harmonia e o auto-crontole. (pág. 23); achava-se um super-homem (pág. 24); às vezes sentia ser uma espécie de filho de rei, embora seus ascendentes fossem plebeus. (pág. 24); sentia-se um eleito para este longo e constante êxito. (pág. 24); mesmo assim, seu desejo por satisfação e alegria era insaciável (pág. 24).

 

Em síntese, era um homem superficial, satisfeito consigo mesmo, que aparentemente vivia praticando as virtudes cristãs e se vangloriava sobre isso.

 

Numa noite, porém, ocorreu o primeiro fato essencial e a sua vida e personalidade sofreu certo desvio de rota. Atravessando uma ponte em Paris, no cume de tais sensações, acabou por presenciar um suicídio ou algo parecido e, para seu próprio espanto, sem esboçar qualquer ato de compaixão. Não é absurdo considerar que a personagem praticou um crime de omissão de socorro.

 

De homem seguro de si, então, se transformou num homem desconfiado de si mesmo. Passou a vislumbrar que, no íntimo, seus pensamentos e ações se dirigiam exclusivamente para satisfazer o seu orgulho e egoísmo, sendo assim, eram contrários àqueles tidos como universalmente corretos. Ele representava o papel de bom homem, apenas com o objetivo de obter o sucesso e a aceitação de todos; no fundo, não possuía amor por ninguém, a não ser por ele próprio, e em nome desse amor era indiferente à existência de qualquer pessoa.

 

Assim descreveu na página 52 a descoberta sobre si próprio, que não mais lhe “largou desde aquela aventura”.  A “aventura”, num tom evidentemente irônico, é o episódio do corpo que caiu na água:

 

“Ah! Não sinto nenhum prazer especial, acredite-me, em contar-lhe isto. Quanto penso neste período em que eu pedia tudo, sem nenhuma compensação de minha parte, em que mobilizava tantos seres para me servir, em que os colocava, de certo modo, na geladeira, para um dia ou outro tê-los à mão conforme a minha convenviência, não sei que nome dar ao curioso sentimento que me invade. Não será vergonha? A vergonha, diga-me meu caro compatriota, ela não queima um pouco? Sim? Então, talvez se trate dela ou de um desses sentimentos ridículos, que dizem respeito a honra. Parece-me, em todo o caso, que este sentimento nunca mais me largou desde aquela aventura, que eu encontrei no centro de minha memória e cuja narração não posso adiar mais, apesar das minhas digressões e dos esforços de uma inventiva à qual, espero, fará justiça.”

 

 Ponto importante, que revela a essencialidade do primeiro fato é, inclusive, a afirmativa do narrador personagem de que o citado fato se encontra no centro de sua memória. Logo, todo o seu ser sofreu a influência disso que não por outras razões se encontra no centro de sua memória.

 

Então, em meio a desconfortáveis descobertas, num crescendo, ocorreu o segundo fato essencial – o episódio do riso que explodiu nas suas costas.

 

A partir deste dia, a personagem recuperou a memória de todos os seus atos e de quais sentimentos e princípios os norteavam, sob a ótica de uma honestidade implacável. Descobriu o quanto era desprezível.

 

Esse é o resumo das suas memórias implacáveis: passou a ter “dificuldades com o bom humor” (pág. 33); afirmou que gostava de todas as ilhas porque era mais fácil imperar nelas (pág. 34); disse que sua insígnia tem duas faces com o lema “não confie”; que no seu cartão de visita profissional está escrito “ator” (pág. 37); que quando deixava um cego do outro lado da calçada, saudava o público como quem representava um papel (fls. 37); que quando ajudou um motorista, por lapso, disse que ninguém teria feito o mesmo (fls. 37); que quando sua memória melhorou, se lembrou de que se comportou como uma criatura digna de pena numa discussão de trânsito (fls. 41 e 42); que se relacionava com as mulheres para satisfazer os seus interesses pessoais (fls. 44); que na sua vida teve um único grande amor: ele mesmo (fls. 44); que se dedicava tanto a sensualidade que largava pai e mãe por uma aventura (fls. 45); que transou com uma mulher e, quando ela comentou sobre seu mau desempenho na casa, seduziu-a de novo se redimindo do fracasso e, quando ela o elogiou, ele a abandonou de repente (fls. 48 e 49).

 

E essas são as conclusões deduzidas por sua honestidade intelectual: a vida se tornou menos fácil. (pág. 34); parecia que tinha desaprendido a viver (pág. 34); sempre um poço de vaidade (fls. 37); eu eu eu, eis o refrão da sua preciosa vida (fls. 37); só conseguia falar me vangloriando (fls. 37); sempre se achou mais inteligente que todo mundo, mais sensível, mais hábil, atirador de elite, melhor piloto e melhor amante (fls. 37); sempre se esquecia de tudo que não fosse seu próprio eu (pág. 39); pouco a pouco sua memória voltou (pág. 39); uma briga de rua e sua humilhação lhe provaram que ele não queria ser bom, inteligente e generoso, mas queria era dominar os outros. (fls. 42); descobriu em si “agradáveis sonhos de opressão” (fls. 43); só ficava do lado dos criminosos porque eles não eram as vítimas, mas quando eram vítimas, queria mesmo era atacar o delinqüente (fls. 43); nunca se preocupou com os grandes problemas a não ser no intervalo dos seus desregramentos (fls. 46).

 

Na página 38, diz, categoricamente, que a memória implacável e o julgamento com honestidade intelectual, à pouco referido, decorreu do segundo fato essencial – o episódio do riso que explodiu nas suas costas, aqui mencionado como “a noite de que lhe falei”:

 

“Com algumas outras verdades, descobri, pouco a pouco, estas evidências, durante o período que se seguiu à noite de que lhe falei. Não imediatamente, não, não, nem com muita nitidez. Foi preciso, primeiro, recuperar a memória Gradativamente, fui vendo mais claro, aprendi um pouco do que sabia. Até então, tinha sido sempre ajudado por um espantoso poder de esquecimento.”

 

Em face dessas verdades reagiu de vários modos, de acordo com as distintas ocasiões e variação do seu humor.

 

Primeiro, numa atitude de rebeldia, como quem diz “chega de representações e a partir de hoje serei eu mesmo” passou a se comportar de modo diferente do habitual, chocando aqueles que o conhecia.

 

Esses foram os atos surpreendentes e irreconhecíveis: tinha a sensação de que todos o julgavam e que sorriam dele. (fls. 60); tinha a impressão que lhe davam rasteira e chegou a cair estatelado no chão (fls. 60); começou a descobrir que tinha inimigos entre pessoas que nem sequer conhecia (fls. 60), começou a tratar mal os mendigos e a escrever uma ode a polícia e uma apoteose as guilhotina (fls. 70); passou a ficar obcecado pela morte (fls. 68); dizia “Graças a Deus” em reuniões de humanistas. (fls. 70); não tinha mais amigos (fls. 56); representava o tempo inteiro (fls. 66); queria confessar a verdade sobre si mesmo, mas não a Deus, por que se sentia acima Dele (fls. 68); quanto mais lhe elogiavam, mas a verdade se tornava insuportável (fls. 69); pensou em se revelar de vez e praticar vários atos malignos (fls. 69); queria perturbar o jogo e destruir sua reputação lisonjeira (fls. 70); o riso continuava a flutuar sobre sua vida (fls.72).

Segundo, sem querer se desvencilhar do orgulho e egoísmo, tentou fugir da culpa e da verdade através de uma entrega completa a ações inebriantes: procurou o amor das mulheres, a castidade, a libertinagem e o alcoolismo.

Decidiu abandonar o convívio dos homens (Pág. 75); como fuga, passou a buscar o amor das mulheres (Pág. 75); viveu uma falsa paixão por uma leitora de revistas femininas, mas descobriu que ela era uma serpente (Pág. 76); ainda em fuga, tentou viver uma vida de castidade (Pág. 77); continuando a fugir, buscou a libertinagem (Pág. 77); ainda em fuga, se entregou a bebedeira (Pag. 80); o proveito dessa vida dissoluta era que o prazer excessivo delimitava a imaginação e o julgamento (Pág. 80); na vida de orgia, ele “vivia em uma espécie de nevoeiro, onde o riso era abafado” (Pág. 81); essa vida, entretanto, começou a comprometer o seu trabalho (Pág. 81); deixou de ter vida social (Pág. 81).

Mas novamente se deparou com a cena da omissão de socorro, quando, numa viagem de navio ocorreu o terceiro fato essencial – o episódio do resíduo no meio do oceano. Assim chegou a seguintes constatações nas páginas 82 e 83:

 

Compreendi, então, sem revolta, como nos resignamos a uma idéia, cuja verdade se conhece há muito tempo, e que aquele grito que, anos atrás, havia ressoado às minhas costas no Sena, levado pelo rio em direção as águas da Mancha, não havia deixado de caminhar pelo mundo, através da vastidão ilimitada do oceano, e que tinha me esperado até aquele dia em que o encontrara. Compreendi, também, que ele continuaria a esperar-me nos mares e nos rios, por toda parte, enfim, onde se encontrasse a água do meu batismo. (...).

Acabara-se a vida gloriosa, mas também a raiva e os sobressaltos. Era preciso submeter-se e reconhecer a culpa. Era preciso viver no desconforto”.

 

Por fim o personagem/narrador se transformou num juiz-penitente.

 

2.5. O que é ser um juiz-penitente.

 

Nas páginas 104 e 105 a personagem define com exatidão o ofício de juiz-penitente:

 

“Exerço, pois, no Mexico-City, há algum tempo, a minha útil profissão. Esta consiste, em primeiro lugar, como o senhor já viu por experiência própria, em praticar a confissão pública com a maior freqüência possível. Acuso-me de alto a baixo. Não é difícil, agora já tenho memória. Mas, cuidado, não me acuso grosseiramente, batendo com força no peito. Não, navego com jeito, multiplico as sutilezas, às digressões também, adapto, enfim, o meu discurso ao ouvinte, conduzo este último a pedir mais alto. Misturo o que me diz respeito e o que se refere aos outros. Pego os traços comuns, as experiências que sofremos juntos, as fraquezas que partilhamos, o bom-tom, o homem do dia, enfim, tal como se manifesta em mim e nos outros. Com isso, monto um retrato que é o de todos e o de ninguém. Uma máscara, em suma, bastante semelhante às do carnaval, ao mesmo tempo fiéis e simplificadas, e diante das quais dizemos: ‘Olhe, eu já o vi antes’. Quando o retrato esta terminado, como nesta noite, mostro-o, cheio de desolação: ‘Aqui está, ai de mim, o que sou. O requisitório acabou. Mas, ao mesmo tempo, o retrato que eu apresento aos meus contemporâneos torna-se um espelho’.

 

Coberto de cinzas, arrancando lentamente os cabelos, o rosto arado pelas unhas, mas com o olhar penetrante, mantenho-me ante a humanidade inteira, recapitulando as minhas vergonhas, sem perder de vista o efeito que produzo, e dizendo: ‘Eu era o último dos últimos’. Então, insensivelmente, passo, no meu discurso, do ‘eu’ ao ‘nós’. Quando chego ao ‘eis o que nós somos’ a sorte está lançada, posso dizer-lhe as suas verdades. Sou como eles, é certo, estamos no mesmo barco.”

 

A atividade do juiz-penitente se divide, portanto, em dois passos básicos, que são a “pintura do retrato” e a “transformação do retrato num espelho”.

 

A “pintura do retrato”, por sua vez, é composta de três partes: o inventário dos “defeitos de si próprio”, “os que se referem aos outros’ e ‘os que são traços comuns”.

 

Utiliza-se, para isso, de um método meio racional, meio confuso, meio adaptativo. Diz o personagem: “navego com jeito, multiplico as sutilezas, às digressões também, adapto, enfim, o meu discurso ao ouvinte...”. Multiplicar as sutilezas significa utilizar-se de um método racional para enumerar e discorrer sobre o máximo de aspectos que compõe um determinado fato. Multiplicar as digressões, por sua vez, significar interpolar a dissertação sobre o tema principal com a narrativa de outros fatos e opiniões de modo a causar certa confusão no ouvinte. Já adaptar o discurso ao ouvinte, significa dosar e conduzir as sutilezas e digressões para a posição onde se localiza a personalidade daquele que ouve.

 

A narrativa principal da personagem é a estória da sua própria vida, a qual é contada com todas as sutilezas que o método racional abarca. As interpolações da narrativa principal são os fatos e opiniões sobre os defeitos dos outros e do que é experiência comum. E a adaptação consiste em conduzir tudo isso para a identificação com a própria personalidade do ouvinte.

 

A “pintura do retrato”, portanto, fica bastante crível, pois apela para a razão do ouvinte com aquilo que é mais caro a razão: a coerência e a honestidade intelectual. Ora, quando a personagem fala sobre os seus erros fundamentais, enfatizando todas as sutilezas que os compõe, aos olhos do ouvinte, ele presta talvez a maior homenagem que se pode prestar a razão, e com este ato se investe de uma aura de honestidade intelectual que torna o seu discurso perfeito.

 

Mas esta é apenas uma parte do retrato, a parte por assim dizer possuidora de substrato. A esta parte, a personagem deseja colar outra, que deve se sustentar no substrato daquela. Para isso, metodologicamente, esta não pode ser exposta num bloco unitário, pois restaria patente a sua carência de fundamentação. Então, para se sustentar no substrato da outra vem misturada na outra, dissolvida na outra, de modo que a razão e a honestidade intelectual que sustenta a outra também sirvam para sustentar esta aos olhos do ouvinte.

 

Assim é porque o objetivo da personagem com a “pintura do retrato” é formar a feição de um homem sem identidade, que possui uma certa carga de concretude, dada pela narrativa dos seus erros fundamentais, mas que também possua uma carga de abstração, dada pelos erros dos outros e pelas experiências comuns. Diz a personagem que “Com isso, monto um retrato que é o de todos e o de ninguém. Uma máscara, em suma, bastante semelhante às do carnaval, ao mesmo tempo fiéis e simplificadas...”

 

Assim, pintado o retrato, passa-se então para a “transformação do retrato num espelho”. Significa dizer que o próximo passo da personagem é afirmar, num giro de cento e oitenta graus, que em verdade, desde o início, não se tratava de uma pintura de retrato, mas sim que o interlocutor ouvia a descrição da própria face que para ele se refletia do espelho. O conjunto de erros compunha a própria personalidade do interlocutor.

 

Este, então, convencido pela razão e persuadido pela honestidade intelectual, aceita como se fosse o seu rosto a máscara pintada pela personagem e pronto, o terreno foi adubado adequadamente para o julgamento do juiz-penitente. “Quando chego ao ‘eis o que nós somos’ a sorte está lançada, posso dizer-lhe as suas verdades. A personagem poderá enumerar mais verdades aplicadas especificamente ao interlocutor.

 

2.6 Qual é o objetivo do juiz-penitente 

 

Logo depois de narrar o que é ser um juiz-penitente, a personagem diz para que serve este ofício. Há, portanto, um objeto imediato e um objetivo mediato. O imediato é aquele perseguido pela personagem como efeito direto da sua prática, já o mediato é efeito produzido pela consecução dos imediatos.   

 

Assim diz a personagem quanto aos objetivos imediatos (pág. 105):

 

“O senhor vê a vantagem, disto tenho certeza. Quanto mais me acuso, mais tenho o direito de julgar os outros. Melhor, provoco as pessoas no sentido de julgarem a si próprias, o que me consola igualmente.”

 

Portanto, dois são os efeitos imediatos: aquisição do direito de julgar os outros e a provocação do julgamento de si próprios pelos outros. A rigor, entretanto, há apenas um efeito que se manifesta de dois modos, senão vejamos: o primeiro modo, “julgamento dos outros”, decorre do convencimento que confere o direito adquirido pela personagem junto à consciência de quem houve, e este convencimento decorre da razão parcial e da suposta honestidade intelectual que a personagem utiliza para formular as suas acusações; o segundo modo, por sua vez, “o julgamento de si próprio”, é o outro de outro modo, porque a razão parcial e a suposta honestidade intelectual da personagem, depois de percorrido todo o seu caminho do convencimento, são transplantadas para dentro da consciência do ouvinte e passa então a ser o discurso interno da personagem no centro da alma do ouvinte, daí porque pensa que é ele mesmo (ouvinte) que formula um julgamento sobre seus atos e pensamentos, mas é apenas a voz da personagem manifestada internamente na consciência do ouvinte.

 

Os objetivos mediatos são revelados nas seguintes passagens (pág. 106 e 107):

 

“Não mudei de vida, continuo a amar-me e a me servir dos outros.

(...)

Desde que encontrei a minha solução, abandono-me a tudo, às mulheres, ao orgulho, ao tédio, ao ressentimento, e até a febre que, com deleite, sinto subir neste momento. Impero, enfim, mas para sempre. Encontrei novamente um cimo, onde sou o único a escalar e de onde posso julgar todo mundo.”

 

A partir desta noite, aliás, vou recomeçar. Não consigo deixar de fazê-lo, nem privar-me desses momentos em que um deles desaba, com a ajuda do álcool, e bate no peito. Então eu cresço, meu caro, eu cresço, respiro livremente, estou sobre a montanha, a planície estende-se sob meus olhos. Que embriaguez sentimo-nos Deus-pai e distribuir atestados definitivos de má conduta e maus costumes. Eu pontifico entre os meus anjos vis, no alto do céu holandez, vejo subir até mim, saindo das brumas e da água, a multidão do Juízo Final.

 

Estes, portanto, são os fins últimos da personagem. O julgamento dos outros e a provocação nos outros do julgamento de si mesmos são ainda caminhos para onde a personagem quer chegar. Ela quer triunfar psicologicamente sobre todos os seus interlocutores e de um modo semelhante ao triunfo de Deus-pai no Juízo Final.

 

Ressalta-se aqui apenas um erro teológico: quem julga no Juízo final é Deus-filho e não Deus-pai.

 

Verifica-se, portanto, que a personagem não mudou de vida, mas apenas de método. Antes, relacionava-se com o outro pautado na prática da distribuição do bem. Caiu em si e percebeu que aquela prática era mera representação externa para triunfar sobre todos, com o objetivo de satisfazer seu orgulho e egoísmo, pois queria ser para todos uma espécie de Deus. Percebeu que este “cair em si” era um tipo de ‘julgamento racional e honesto sobre si mesmo”, portanto, “julgamento verdadeiro”, e que isto significava entrar na posse de algo que lhe permitiria de um outro modo triunfar sobre todos semelhantemente a Deus: assim como nada escapa dos olhos de Deus, nada escaparia da razão e honestidade de Jean-Batiste. Daí porque muda o seu método de triunfo para o julgamento.

 

Dos dois atributos de Deus: a distribuição dos bens e o julgamento, Jean-Baptiste percebeu que sua alma nada tinha a ver com um (distribuição dos bens), mas que tinha certo pendor para o outro (o julgamento).

 

Mas porque distribuir condenações e não salvações? Porque a única verdade com substrato no discurso, cujo substrato é utilizado para sustentar todas as outras proposições, é a verdade da condenação de si próprio: “ora, se eu sou condenado, você é condenado e se nós somos condenados, a espécie humana é condenada”.

 

Na distribuição dos bens, a personagem percebeu que era um Deus de barro; no julgamento, percebeu que era um Deus manco. Concluiu daí que é mais crível um Deus manco que um Deus de barro. Passou então a ser um Deus manco para satisfazer o seu único desejo, o desejo da sua vida inteira, que é ser um Deus triunfante.