domingo, 8 de novembro de 2009

CARTA DO IMPERADOR JULIANO AO BISPO GREGÓRIO DE NAZIANZO



O que dizer sobres os Livros, Gregório,
senão recordar suas infinitas divisões,
o mérito de revelarem o que se propuseram,
o fracasso de serem incompreendidos de todo?

O que dizer sobre os Livros, Bispo,
senão recordar suas infinitas galerias,
vertiginosas galerias que possibilitam
e impossibilitam o prazer de teus pares?

Dizer-lhe que os Livros não são Livros,
porque os pássaros brotam das árvores.
Dizer-lhe que os Livros são fechar os olhos,
são uma muralha e são um deserto.

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

EPITÁFIO PARA CECÍLIA


 Ao findar o último arco do sol,
um negro foragido grafou
em árabe à falecida ama portuguesa;
vê-se na lápide as letras encarvoadas:

“Em louvor ao inevitável desvaneceu
Cecília; nascida a mais miúda de
estatura, nunca foi miúda no desejar.
Corcunda, sim, pitava igual às negras.

Os admiradores, se os têm, que rezem louvores,
em lembranças dos humanos feitos seus,
pois dada a zelos de filhos alheios, forasteiros,
ela o merece com efeito.

Avoadores, suspiros e sonhos
desprezou como alimento consolador,
e aos sessenta e nove anos abandonara a vida,
legando ao seu negro o desamparo.”

sábado, 17 de outubro de 2009

PONTE
  

Meu avô construiu uma ponte
sem corrimão ou ponto de equilíbrio.
Atou a ferrovia à vila.

Varizes espocam do pilar ao ápice.
Estacamos frente à ponte: cansados.
Meu avô estirou sua rede de viagem.
Entre dois pontos atou seu espaço.

Sussurramos mal dizeres no escuro.
O corpo enterrado nos interstícios.
A alma quebrada sobre os vagões.

Atiro os despojos n’água.
Meu avô construiu uma ponte.
Nunca poderei atravessá-la.

quarta-feira, 30 de setembro de 2009

NO LEITO DE NEBRÍDIO



À época pensei, Nebrídio, que te recobrar para a vida
não dependia do bendito ato do batismo,
mas te levantarias pela memória dos nossos discursos,
pela vitória do bem na luta travada dentro de ti.

Errei – meu amor por ti exigia te recobrar para a vida,
enquanto eles, os humildes de Roma, movidos por outro amor,
lavavam tua mente da confusão de palavras
que encobria a simples imagem do paraíso.

Junto a teu corpo falecido, faleceram minhas idéias,
feitas de carne e sangue como a matéria de qualquer corpo.
Tua alma agora pode seguir para o céu,
e eu posso deixar as estradas do erro.

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

SOBERBA DE BAZAROV 


"Meu pai organizou nossa fazenda
com alguma habilidade no cultivo.
Construiu o estábulo, preparou o pasto,
protegeu a cultura do pastar dos brutos,
domesticando, cercando como lhe era possível,
na proporção da pouca ciência do seu tempo.
Reconheço que aos poucos entregou os seus dias
numa luta contra pragas.
Filho único, herdei a fazenda,
predestinado agora a experimentar meu engenho:
deixei o pó ocupar os poros das folhas,
o esterco entupir as cocheiras,
o capim crescer ao léu rarefeito.
Esse ano semeei aos pássaros
sementes guardadas por meus ancestrais,
porque aprendi que a beleza pertence à desordem,
assim como o útil, às herdades abandonadas.
Educado pelos atuais doutos,
legarei um campo tomado de ervas daninhas."

terça-feira, 15 de setembro de 2009

CONFISSÃO DE VRONSKI

“Assim como um canal polui o mar,
para aonde conduzo os meus sentidos
sinto o pesar da criatura amada.
Meu coração se estreita em constrições
num enjôo desesperançoso que se alarga
de meu peito ao seu, ante o nosso sorriso frouxo.
É como se a minha essência entupisse
os condutos do seu entendimento e, 
por isso, fosse de todos a pior essência.

E mesmo assim, Deus, a Ti entrego meu espírito,
sabendo que não tenho mãos
para receber a Tua dádiva,
pois levo comigo a origem da maldade.
Em meio a tantas dúvidas Te indago:
Há perdão para o meu pecado?”

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

MANUELA OU ANA KARENINA

Reduziu o universo à ponta do
alfinete que encurtava o seu decote.
Aguardava uma vertigem como
a um messias repentino.

Trocou sua família pela noite,
quando imergiu na confusão dos homens.
Desprendeu-se cônscia da morte,
mas impedida de recuperar o amor.

E foi disposta a ouvir todas as mentiras
que a consciência conta ao corpo,
e foi desabrigada sobre uma tempestade de medo,
e saltou sobre os trilhos da ferrovia.

quinta-feira, 3 de setembro de 2009

    Amigos;

    O escritor Marsílio Ficino foi responsável pela primeira tradução da obra de Platão para o latim por volta de 1483. Depois, publicou os seus comentários sobre o amor, que compôs a partir de interpretações extraídas dos diálogos Banquete e Fedro. Segue um trecho do referido livro chamado Commentarium in Convivium Platonis, traduzido para o português por Ana Thereza Basílio Vieira com o título de “O Livro do Amor”, e publicado pela Editora Clube de Literatura Cromos. Aqueles que já viveram ou vivem uma experiência de amor, seja para com Deus, com os pais, com os filhos, com os esposos, com os parentes, com os amigos, ou com o próximo, lerá a descrição do que provavelmente não conseguia traduzir em palavras:

   “Todas as vezes que duas pessoas se amam com mútua benevolência, este naquele e aquele neste vive. Deste modo, os homens reciprocamente se trocam e cada um destina a si mesmo ao outro, a fim de recebê-lo. Vejo de que modo trocam-se a si mesmos, quando se esquecem de si. Mas não percebo como recebem o outro. Pois, aquele que não tem a si mesmo, muito menos poderá possuir o outro. Mas, na verdade, cada um tem a si próprio e ao outro. Porque ele existe, mas naquele. Aquele também existe, mas neste. Sem dúvida, enquanto eu te amo, encontro-me, amante, em ti, estando eu pensando em mim, e recobro-me por mim mesmo, perdido na minha negligência, conservando-me em ti. A mesma coisa tu fazes em mim.

    E de novo isto parece admirável. Pois eu, depois que perdi a mim mesmo, se por ti me recobro, por ti tenho a mim; se por ti tenho a mim, eu te tenho antes e mais que a mim mesmo, estou mais próximo de ti que de mim, visto que me ligo a mim precisamente por ti. Nisto sempre a força do desejo difere da violência de Marte. Pois, assim o império e o amor se diferenciam. O imperador por si possui os outros, o amante pelo outro se ama e cada um dos amantes torna-se maior por si mesmo, mais próximo do outro, e morto em si revive no outro. De fato, existe apenas uma única morte no amor recíproco, e uma dupla ressurreição. Pois morre uma vez em si mesmo aquele que ama quando se despreza. Logo renasce no amado, quando o amado o recebe com ardente pensamento. Renasce pela segunda vez, quando no amado, enfim, se reconhece e não duvida que é amado. Ó morte feliz, que duas vidas perseguem! Ó comércio admirável, no qual alguém trai a si mesmo pelo outro, tem o outro e não deixa de ter a si! Ó lucro inestimável, quando dois assim se fazem um, porque cada um dos dois por um só se faz dois e, como se fosse duplicado, quem tivera uma vida, já terá duas, sobrevindo uma morte! Pois quem uma só vez está morto renasce duas vezes, por uma vida fez-se duas, e por si, sendo um, conseguiu duas vidas para si.”

segunda-feira, 31 de agosto de 2009

PEDIDO

Ó Sono domador da face ridente,
ó Nutriz daqueles que são e não são,
ó Face vertiginosamente refletida,
ó Ponto, ó Arco, ó Esfera... ó Ponto.

Sendo maior que o imensurável,
estando além do inatingível,
sei que conheces profundezas de mim
aonde eu próprio, consciente, não fui.

Quando soprares Tua imensa concha
a inundar o mundo de silêncio,
guarde a memória dos nossos erros
constitutivos; nós, os comedores do fruto.

domingo, 30 de agosto de 2009

[Depois de cantar um canto irresistível]
 
Depois de cantar um canto irresistível
aos nautas que há muito não trafegavam
por aqueles mares distantes;
depois do canto ecoar nos rochedos
de sua ilhota e nos ouvidos das gaivotas
que, impassíveis, se estendiam ao sol,
o último daqueles animais sem destino
atravessou o Mediterrâneo, o Atlântico
e a Baía de Todos os Santos, para emergir
seu corpo perfeito no Porto da Barra,
sob os olhares luminosos dos turistas,
à procura de Odisseu.

quinta-feira, 27 de agosto de 2009

ASCESE

Remaria o meu barco outras vezes
sem leme para onde o amor apontasse.
Contudo cri ser maior que o Todo
e assim fui desviado do rumo
no qual ansiei retomar a viagem.
Obrigado a ver e rever a Discórdia nas águas,
numas ilhas me foi negada a visão,
noutras perdi o pendor de amar.
Peregrinei marginal em áridos territórios,
mas sempre mantive o meu espírito ascético
na firme convicção do retorno.
Triste viagem enfim me trouxe à arcada paterna,
foram anos sem conta correndo países,
preso em loucuras semelhantes aos sonhos.
Concedeu-me, então, Pai, aportar nesta praia,
neste sítio onde vejo portas abertas
à espera de mim há muito perdido. 

quarta-feira, 26 de agosto de 2009

Amigos;
Recentemente li o único romance do grande escritor Gustavo Corção, cujo título é “Lições de Abismo”, publicado pela Editora Agir. Confesso que a literatura brasileira nunca foi a minha predileta, mas este livro, em especial, guardarei na mesma gaveta de minha memória em que guardo os grandes romances da literatura ocidental. Segue um trecho, no qual podem perceber não somente a habilidade do escritor como também a profundidade com que o tema é tratado:

“Fico a olhar Sirius. E cá de baixo, deste chão que me cola, apesar de minhas misérias, de minha leucemia, de minhas truncadas recordações – ainda mais truncadas do que as células do meu sangue – eu lanço um repto ao claro globo azul que me fita lá do alto, lá do seu abismo com cinqüenta anos-luz de profundidade.

O sol, ó diáfana matéria, ó imensidade perdida dentro da imensidade, aqui onde me vês eu sou um Homem, Verme consciente, roseau pensant. Qual é o maior, Sirius ou Pascal? Qual dos dois vale mais, o sol ou o melancólico pensador?

Ó astro, Parsifal perdido no céu, tu ignoras teu nome. Vagueias, ó inocente, ó ingênuo absoluto, com teus gases excessivos e um pouco ridículos. Perambulas como um cego, passas como um surdo, vagueias como um desmemoriado de olhar vazio, e vê bem, considera que até para te humilhar é ainda do homem que tiro as imagens. Na verdade, és menos do que um cego, do que um surdo, do que um desmemoriado. A tábua de minha mesa é mais rica do que teu globo de átomos simplificados. De que vale o tamanho? Que nobreza tem a distância? Tu estás acorrentado às equações, mais do que por metáforas lá estão as estrelas de Andrômeda, a acorrentada do céu. Tu és Sirius, Alfha Canis Maioris. Tens ascensão reta e declinação; e nós, nós os vermes, servimos-nos de teu esplendor, cativando-o, domesticando-o e inscrevendo-o no Nautical Almanack. Servo colossal, não passas de servo. Eu sou um verme, mas tenho consciência de sê-lo. Sou miserável, e o sei. Sou ridículo, e riu-me. Sou culpado, e choro.

Ai de nós! A raça de Pascal anda traída. Muitos andam por aí, ó astro, a dizer que também somos acorrentados, que também somos apenas um aglomerado de átomos que durante um certo tempo se demoram em nossos limites, na esquina de um cotovelo, no vértice de um nariz, nas fugitivas pontas dos cabelos. Dizem também que somos ocos, que vivemos da casca que a sociedade nos empresta, ou das eructações que nos vêm das experiências mal digeridas. Mas não te iludas com esses detratores, ó astro. A insensatez dessa gente, por derrisão, é a contraprova de nossa dignidade. Nós temos um imenso privilégio, que é o avesso de nosso manto real; nós temos a glória do erro.

Mas eu não vou discutir contigo, estrela; não vou argumentar. Basta que me apresente: eis aqui um homem. A luz que me chega à retina não encontra um ser passivo e inerte, como uma placa recoberta de bromureto, que recebe a imagem, que a revela no banho dos humores, que a fixa no hipossulfito da memória, e em função desse impacto dos fótons age, fala, dança e chora. Não. Pensar não é simplesmente receber. É algo mais ativo, que vai ao encontro do objeto. Quando a luz do astro me bate á porta dos sentidos, há em mim alguma coisa que se ergue de um trono, que recebe o mensageiro, que examina a mensagem, apossando-se dela, transformando-a, sutilizando-a – e que diz ao coruscante vassalo do céu: ‘Tu és Sirius, Alfha Canis Maioris’”.

terça-feira, 25 de agosto de 2009

HEITOR
  
"Mesmo contra dominadores de artes mundanas,
apesar de fadado a nunca vencer,
sempre lutarei em defesa dos meus.
Nestes confrontos de mundos opostos,
mesmo fadado a ser pasto dos cães,
sempre lutarei em defesa dos meus.

Se atado ao peito carrego meu filho
que ainda ignora os frutos da terra,
Se a amada esposa aguarda ansiosa
o fim desta guerra de tantas derrotas
- sendo tais os legados a serem mantidos -
sempre lutarei em defesa dos meus.

Pois vejo deuses e homens vitoriosos na luta
mortificar seus espíritos em dores ocultas,
ao passo em que, de derrota em derrota,
nos invisíveis confrontos entre vidas opostas,
sigo rumo a estrela do Teu nascimento
e em Ti eu encontro mais que consolo.”