sexta-feira, 23 de outubro de 2009

EPITÁFIO PARA CECÍLIA


 Ao findar o último arco do sol,
um negro foragido grafou
em árabe à falecida ama portuguesa;
vê-se na lápide as letras encarvoadas:

“Em louvor ao inevitável desvaneceu
Cecília; nascida a mais miúda de
estatura, nunca foi miúda no desejar.
Corcunda, sim, pitava igual às negras.

Os admiradores, se os têm, que rezem louvores,
em lembranças dos humanos feitos seus,
pois dada a zelos de filhos alheios, forasteiros,
ela o merece com efeito.

Avoadores, suspiros e sonhos
desprezou como alimento consolador,
e aos sessenta e nove anos abandonara a vida,
legando ao seu negro o desamparo.”

sábado, 17 de outubro de 2009

PONTE
  

Meu avô construiu uma ponte
sem corrimão ou ponto de equilíbrio.
Atou a ferrovia à vila.

Varizes espocam do pilar ao ápice.
Estacamos frente à ponte: cansados.
Meu avô estirou sua rede de viagem.
Entre dois pontos atou seu espaço.

Sussurramos mal dizeres no escuro.
O corpo enterrado nos interstícios.
A alma quebrada sobre os vagões.

Atiro os despojos n’água.
Meu avô construiu uma ponte.
Nunca poderei atravessá-la.